Infância
ameaçada
Pedro J. Bondaczuk
O
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) inicia, nesta segunda-feira,
reunião anual para analisar a situação da criança no mundo, nos mais variados
aspectos. A ênfase do encontro será para a avaliação dos riscos e dificuldades
que essa faixa da população enfrenta, que vão desde os conflitos armados na
África, na Ásia e na América Central – em que meninos entre sete e catorze anos
são recrutados como combatentes – à exploração cínica e vil da mão-de-obra infantil;
dos abusos sexuais de que são vítimas às mais variadas formas de violência,
físicas e psicológicas a que são submetidas. E, predominando sobre todas essas
distorções sociais e comportamentais (gravíssimas, absurdas e continuadas), destacam-se
a desnutrição, a fome e as absurdas mortes por inanição.
Choca
saber que tanta criança morre à míngua quando se sabe que há superprodução de
alimentos no mundo (e não é de agora). No mês passado, por exemplo, o Banco
Mundial divulgou extenso e detalhado relatório sobre o problema, enfocando
adultos e crianças, e deixou claro que comida é o que não falta.
É
evidente que, quando se trata de fome – num mundo que gasta bilhões de dólares
por ano para estocar todos os tipos de grãos, apenas para forçar a alta dos
preços, de forma a que se tornem compensadores para os que os produzem – o tema
choca e revolta, ainda mais quando trata da faixa mais desprotegida da
população.
Dados
do corrente ano revelam que, um em cada quatro habitantes do Planeta, não come
o suficiente, ou sequer se alimenta todos os dias. Mas quando se trata de uma
criança, a questão é infinitamente mais grave. Adquire proporções de tragédia.
Informações, como esta, chocam e revoltam, ainda mais quando se sabe que o
mundo produz, anualmente, um volume de alimentos quarenta vezes superior às
suas necessidades. Não há motivos materiais, portanto, para que quem quer que
seja passe fome. Mas milhões, mundo afora, passam.
O
Unicef concluiu que a desnutrição infantil está aumentando substancialmente,
enquanto o Banco Mundial constatou que a causa do problema não está exatamente
nos preços dos alimentos, como poderia se supor, já que estes despencaram
vertiginosamente nos últimos meses, nos mercados internacionais.
Em
seu estudo, o Bird conclui, após assinalar a inexistência de motivos para o
crescimento mundial de contingentes de desnutridos e subnutridos: “Muitos
países pobres, com centenas de milhares de pessoas, não participam dessa
abundância. São muito pobres para comprar os alimentos de que necessitam”, apesar da drástica redução dos preços.
A
raiz de tudo, portanto, está na injustiça social. Está na ganância. Está na
má-distribuição de renda. Está na exploração do homem pelo homem. Está no
egoísmo, este vírus mortal que levará, fatalmente, a humanidade à extinção,
mais cedo ou mais tarde, a menos que seja extirpado, ou pelo menos atenuado.
Como
conceber que meio bilhão de crianças estejam passando fome, por falta de
recursos, quando se sabe que, apenas Estados Unidos e União Soviética gastarão,
neste ano, a “bagatela” de US$ 1 trilhão na corrida armamentista?! E para que
servem as armas? Óbvio, destinam-se, única e exclusivamente, a matar, qualquer
imbecil sabe disso.
O
leitor conhece por acaso alguém que tenha atingido um grau pelo menos médio de
felicidade apenas porque possui uma arma? Se conhecer, essa pessoa não passará
de um demente, de um paranóico, de um homicida em potencial. Sabe de
algum país que tenha acabado com as distorções de sua sociedade com a simples
aquisição de canhões, tanques, caças de combate ou mísseis? Pode, porventura,
apontar um só Estado que tenha solucionado o problema da mortalidade infantil
montando poderosos e fartos arsenais de guerra? Não, claro que não!
Mas
é dessa forma que agem os governos da maioria dos países pobres. Adquirem armas
e mais armas, como se essas fossem artigos essenciais à sua sobrevivência. E os
ricos, claro, contribuem com sua parcela de irresponsabilidade. Fomentam
guerras, para criar mercados para as engenhocas que fabricam. Exemplo? São
tantos, mas apresento apenas um. A ajuda militar que os Estados Unidos dão,
anualmente, a El Salvador, para combater a guerrilha, é dez vezes maior do que
o parco auxílio humanitário que prestam a este mesmo país da América Central. E
não são apenas os norte-americanos que agem dessa forma.
No
plano interno, desses Estados paupérrimos e ignorantes, o egoísmo e a ganância
são absurdos e abjetos. Quanto mais miserável é a República, ou o reino, ou a
ditadura, maior é a concentração de renda da sua população. Quanto maiores são
as carências da grande maioria dos seus habitantes, mais e mais as suas elites
esbanjam e desperdiçam os já por si sós parcos recursos nacionais. Por
conseqüência, menos pessoas auferem os benefícios do trabalho coletivo, que
deveriam ser partilhados, equitativamente, por todos. Daí haver tanta fome,
doenças, desgraças, violência e aberrações.
Claro
que isso não é novidade para ninguém. Ocorre que, para os que contam com
recursos, mesmo que apenas suficientes para uma sobrevivência digna e segura, o
assunto fome é sumamente incômodo. Muito leitor, por exemplo, deve estar
irritado com este artigo e talvez até reclame, junto à direção do jornal,
argumentando que um texto de “mau gosto”, como este, “estragou o seu café da
manhã”. Isso já aconteceu outras vezes. E não ficarei nada surpreso se tornar a
se repetir.
O
risco maior para a humanidade, pois, não é, especificamente, o da existência de
imensos arsenais nucleares, criados pelas superpotências, capazes de destruir
dezenas de planetas do porte da Terra em questão de poucas horas. As armas são
apenas “meios” de destruição, que podem ou não ser utilizados.
O
que assusta é o fato de ninguém se preocupar com as causas que podem levar
países, povos, regiões e continentes a um impasse de tal sorte a ponto desses
artefatos terem de ser utilizados, a pretexto de defesa contra miseráveis e
famintos desesperados e que não têm nada mais a perder, a não ser suas vidas
cinzentas e horríveis. Quando ele atingir esse grau, que não seja mais possível
superar nem mediante o diálogo e nem através de ameaças, e havendo tantas e
tantas armas disponíveis... não há dúvidas: será o fim dessa arrogante espécie,
que se auto-denomina de racional, mas que, de racionalidade, tem muito pouco,
ou quase nada.
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do
Correio Popular, em 12 de abril de 1986)
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