Sunday, March 13, 2016

Como um harém para eunucos

Pedro J. Bondaczuk

O livro, na feliz conceituação de Jorge Luís Borges, “é uma extensão da memória e da imaginação”. Desconhece-se quem foi o escritor pioneiro, o primeiro intelectual que perpetuou em textos observações, reflexões e fantasias. Ele, todavia, existiu e revolucionou o mundo com sua ousadia e sabedoria. Esse bem, hoje tão farto e acessível a quem o queira e dele precise, foi, por milênios, preciosidade sumamente rara, dada as dificuldades materiais (não intelectuais) para sua produção. Por estranho que pareça, as bibliotecas surgiram primeiro – e alguns séculos, se não milênios antes – do que o livro. A razão é até lógica, como se pode depreender sem muito esforço.

Tão logo a escrita foi inventada, como fruto de premente necessidade, essa forma hábil (e genial) de registro foi utilizada, inicialmente, e por muito tempo, apenas por governos, e para fins específicos, notadamente práticos. Ou seja, para registrar, por exemplo, os estoques de alimentos nos armazéns do Estado. Ou para contabilizar a quantidade de homens válidos, aptos a pegarem em armas, para defesa do país ou para eventuais (e bastante comuns) guerras. E para tantos e tantos outros fins, gerando documentos de diversas naturezas que facilitavam e não raro até viabilizavam a administração pública. E esse material todo era arquivado, ou seja, guardado nas bibliotecas, que então, reitero, não contavam com livros (que ainda nem existiam) e que só eram acessíveis a servidores do Estado. O material que continham era sigiloso e causaria sérios transtornos ao governo caso caísse em mãos inimigas.

Com o tempo, esses depósitos de documentos foram estendidos aos templos, dedicados aos vários deuses então cultuados (em algumas partes, esse panteão ascendia às centenas). Pode-se dizer que essas bibliotecas, também restritas, posto que exclusivamente ao clero, continham orações, supostas comunicações dos sacerdotes com os deuses e outros tantos textos considerados sagrados e, portanto, interditos à curiosidade e aos olhares profanos. Esse material, igualmente, a exemplo dos documentos oficiais, não pode ser considerado “livro”, não, pelo menos, como o conhecemos. Desconhece-se por completo quando, como e onde esse objeto tão importante para o desenvolvimento artístico e cultural dos povos surgiu. Há especulações a respeito, e muitas, abundam teorias, todavia... sem qualquer prova.

Os historiadores classificam, para efeito de estudo, as bibliotecas em quatro categorias, de acordo com o material utilizado para a redação dos documentos (e tempos mais tarde, de livros).  As primeiras que foram criadas são as chamadas “minerais”. Seu acervo era totalmente constituído de plaquetas de argila. Houve várias do tipo, na região do Oriente Médio e Mesopotâmia. A biblioteca “mineral” que os historiadores acreditam ser a mais antiga é a do rei Assurbanipal II, último dos soberanos da Assíria, datada do século VII a.C, localizada na capital do seu império (que em certo tempo abrangeu, também, a Babilônia e o Egito), a cidade de Nínive. Ela foi encontrada no século XIX por arqueólogos ingleses. Seu acervo era constituído de cerca de 25 mil plaquetas de argila grafadas em escrita cuneiforme, muitas das quais preservadas e que hoje integram importantes museus europeus.

Essa biblioteca, além de documentos do governo, continha obras, digamos, literárias, entre as quais a mais famosa é a “Lenda de Gilgamesh”, relatando um dilúvio universal que teria dizimado toda a população da Terra, preservando, apenas, a família desse herói e os animais e aves que conseguiu reunir em uma arca que construiu. Essa história, para muitos, teria servido de base para o relato bíblico da epopéia de Noé, embora outros tantos neguem. A biblioteca de Nínive continha preciosos relatos sobre o mundo natural de então, além de textos sobre geografia, matemática, astrologia e medicina. Continha, também, manuais de exorcismo e de augúrios; códigos de leis; relatos de aventuras e textos religiosos. Talvez se esse acervo fosse descoberto séculos antes do que foi, o progresso científico e cultural dos povos teria sido acelerado e menos traumático que foi.

O segundo tipo de bibliotecas, na classificação dos historiadores, é o que eles chamam de “vegetal”. O tipo de material utilizado na redação dos seus textos, nesse caso, era o papiro. Acervos de babilônios, também de assírios, egípcios, persas e chineses tinham esse material como base. Esses mesmos povos tinham, concomitantemente,  bibliotecas “minerais” e ainda as chamadas “animais”, constituídas de pergaminhos, ou seja, de couro curtido de animais, principalmente de cabras. O grande problema desses materiais era sua fragilidade, o que exigia sua frequente recompilação, para que os documentos não viessem a se perder com o tempo.

Mais tarde, com o advento do papel, fabricado pelos árabes (mas inventado pelos chineses por volta de 125 a.C), começaram a se formar as bibliotecas (públicas, mas também as já privadas) mais ou menos parecidas com as nossas. Seu acervo deixou de ser exclusivamente, ou majoritariamente, de documentos, como até então. Pelo contrário, começou-se a priorizar o livro, tal como conhecemos. Essas bibliotecas são chamadas pelos historiadores, como seria de se esperar, “de papel”. Essa transição, porém, requer comentários a parte, que me proponho a fazer oportunamente.

Com as facilidades atuais, de acesso a obras de todas as naturezas e assuntos, abrangendo, virtualmente, a totalidade do conhecimento humano, considero o cúmulo da indiferença, para não dizer “burrice”, a atitude de quem tem todas as condições possíveis e imagináveis de ler, mas não lê. Victor Hugo fez uma comparação até um tanto chula, mas não menos verdadeira, a respeito. Escreveu: “Há pessoas que têm uma biblioteca como os eunucos têm um harém”. Óbvio que para o castrado, de nada vale contar com inúmeras e belas mulheres para os prazeres do amor. A comparação parece-me politicamente incorreta, embora não deixe de ser ilustrativa sobre o que os que não cultivam o saudável (e indispensável) hábito de ler deixam de usufruir. Porquanto, como observou Thomas Carlyle: “Tudo o que a humanidade tem sido, feito, pensado ou lucrado, encontra-se como que magicamente preservado nas páginas dos livros”.


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