Thursday, March 03, 2016

Procuro um livro


Pedro J. Bondaczuk

O “desconhecido” causa as mais diversas reações nas pessoas, de acordo com seu temperamento, formação, visão de mundo e outras tantas características. O bastante curioso, por exemplo, aceita correr todos os riscos possíveis e imagináveis para conhecer o que se desconhece. O prudente, por seu turno, pondera os prós e contras, os riscos e vantagens potenciais, antes de tomar uma decisão. Todavia não se arrisca. Clarice Lispector, em uma crônica do livro “A descoberta do mundo” (Editora Rocco), cita outras reações possíveis, como estranhamento, assombro, deslumbramento e... medo. Mesmo o mais ousado dos ousados, o mais imprudente dos imprudentes, teme encarar o desconhecido. Pudera! Ele está cercado de infinitas potenciais surpresas. Afinal, nunca se sabe o que ele nos reserva. Pode tanto ser a felicidade e a glória, quanto a ruína e até nossa destruição. Ou nenhuma coisa. Depende que tipo de situação é o que não conhecemos, mas que cogitamos conhecer.

O físico Albert Einstein defendeu a idéia de que devemos ter, pelo menos, a “percepção” do desconhecido. Ou seja, que é mister percebermos sua existência. E, mesmo com medo (o que é natural), com as devidas cautelas, temos que buscar conhecê-lo, caso haja possibilidade para tal. O “pai da teoria da relatividade” escreveu, no livro “Como vejo o mundo”: “A percepção do desconhecido é a mais fascinante das experiências. O homem que não tem olhos abertos para o misterioso passará pela vida sem ver nada”. No meu caso, estou na categoria dos prudentes. Minha reação depende de que tipo é a situação (ou coisa) que não conheço, mas cogito conhecer. Afinal, como diz o povão, “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.

Mas... e se esse desconhecido for um livro, que supomos existir, mas que não tenhamos certeza que exista? Afinal, por mais eruditos e maníacos por leitura que sejamos, as obras que lemos são ínfimos infinitésimos de todas as que já foram escritas. Trago esse caso à baila a propósito deste trecho da crônica “O livro desconhecido”, do volume “A descoberta do mundo”, que citei acima, de Clarice Lispector. A prolífica e instigante escritora inicia assim esse pitoresco texto: “Estou à procura de um livro para ler”. Até aí, não há nada de novo, de desafiador, de excepcional. Qualquer um de nós pode estar neste momento à procura de um livro específico, não importa o motivo. A mais brasileira das ucranianas, contudo, na sequência, fornece pistas sobre o que deseja: “Eu o imagino como a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor”. Fica claro, portanto, que se trata mesmo de um livro “desconhecido”, pelo menos por ela.

Clarice prossegue, nessa insólita crônica: “Quem sabe, às vezes penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado”. Nós, que lidamos com Literatura e fazemos dela muito mais do que profissão, obsessão, temos idênticas fantasias. Sonhamos escrever algo tão original e inédito como ninguém, em tempo algum, jamais escreveu. Afinal, isso é possível? Temo que não. Temo que o que escrevemos, ou que pretendamos ainda escrever, mesmo que nem desconfiemos, não passa de um conjunto de variações em torno dos mesmíssimos temas. As palavras são diferentes, os estilos variam, mas os conteúdos... são monotonamente, se não iguais, idênticos a tantos e tantos e tantos outros.   Afinal, tantos e bons escritores já passaram pela Terra (quantos? É impossível até de estimar) , que originalidade é algo que, suponho, nos seja rigorosamente interdita.

Mas Clarice, como sempre, surpreende e na sequência de sua crônica, fugindo do óbvio, do lugar comum, nos traz mais uma surpresa. Escreve, a propósito das fantasias que o tal livro desconhecido lhe suscita:  (...) Eu o estaria lendo e, de súbito, uma frase lida com lágrimas nos olhos, diria em êxtase de dor e enfim, libertação: mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!”. Na verdade, o que ela descobriu foi a felicidade. Até nisso, todavia, Clarice foi original. Assustou-se, ou pelo menos escreveu isso, ao constatar que era feliz. Vejam o que escreveu, não na citada crônica, mas em outro texto, tratando do mesmo assunto, sobre este tão desejável estado de espírito, ao alcance de todas as pessoas que, no entanto, não percebem essa proximidade e teimam em serem infelizes: “Ah milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida, que é sentir-se feliz, e preferem a mediocridade”.

A exemplo de Clarice, também estou à procura desse livro especial, que satisfaça todos meus anseios, e não somente literários (o que já seria muito), mas existenciais, e cujo título e autor desconheço. É, portanto, literalmente “desconhecido”. Como ela, desconfio que esse livro já exista, mas apenas de forma embrionária, em minha imaginação. Concluo que ele não pode ser lido, porquanto ainda estou à procura de palavras adequadas, medidas, exatas, sem contradições e sem ambigüidade, para que possa ser escrito. E decido fazer de sua redação não mero desejo, mas inadiável tarefa a cumprir.


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