Código da Vida
Pedro J. Bondaczuk
A
revista inglesa "Nature" publicou, em sua edição de 1º de outubro de
1995, um suplemento de 379 páginas contendo a maior compilação já divulgada de
pares de bases de nucleotídeos do DNA (ácido desoxirribonucleico). Depois dela,
houve outras tantas publicações a respeito, mas nenhuma tão completa e
detalhada, pelo menos das que eu tomei conhecimento. O que vem a ser isso?,
perguntará, entre curioso e atônito, com certeza, o leitor não especializado em
genética (poucos o são). Trocando em miúdos, seriam as "letras"
químicas com que a natureza escreveu a informação contida no código da vida.
Sua totalidade é chamada de genoma, expressão muito em voga nos últimos tempos,
desde que se começou um ousado projeto internacional de mapeamento desses
elementos que contêm as características básicas dos seres vivos (e das pessoas,
claro). Ou seja, suas aptidões, suas fraquezas, seus desvios e suas doenças,
entre outros.
Dos
inúmeros feitos das ciências, este é o que considero mais surpreendente,
fascinante e ao mesmo tempo perigoso. A surpresa está em o homem chegar ao
próprio segredo da vida em tão pouco tempo, já que as bases da genética foram
lançadas há pouco mais de um século pelo austríaco Gregor Johann Mendel, que
fixou suas três leis fundamentais, após experiências sobre a hibridação das
plantas e a hereditariedade vegetal. O fascínio, pois, é evidente. E qual é o
perigo? Ele está na possibilidade, real, de manipulação, por parte do homem, de
algo que moralmente ele não está preparado para manipular. Estamos tratando de
humanos, com milhões de defeitos, e não com deuses impolutos, perfeitos e
sempre bem intencionados. Já é possível, por exemplo, a produção em série de
pessoas, mediante a reprodução de qualquer de suas células, pelo menos em
teoria. Isso, convenhamos, é assustador.
Temos
toda uma disciplina nova lançando bases, a Engenharia Genética, que se bem
utilizada poderá curar doenças, produzir espécies melhoradas e mais produtivas
de plantas, imunes a pragas, e animais de capacidade superior aos naturais. Em
caso contrário... Bem, os cientistas podem fabricar monstros que tornem a
figura fictícia do Frankenstein, criada pela escritora Mary Sheley, mera brincadeira de criança. Eu não confio em
homens “brincando” de Deus. Você confia, caro leitor? Duvido!
Mas
voltando ao genoma humano, o esforço para lê-lo, lançado a partir de 1991 e
concluído em 1995, é comparável à corrida para enviar um astronauta à Lua,
empreendida nos anos 60, que redundou no extraordinário feito de Neil
Armstrong. As despesas foram astronômicas – de algumas centenas de bilhões de
dólares –, além do que o projeto Genoma Humano absorveu as atenções de milhares
de cientistas, em várias partes do mundo, que trabalharam de forma coordenada.
Todo esse empenho não se deu, todavia, por puro “espírito humanitário” (ou não
apenas por ele). Envolveu interesses financeiros fantásticos, enormes,
exorbitantes, de gigantescas corporações de laboratórios multinacionais ou
transnacionais, como queiram. E, infelizmente, como quase tudo no mundo, serão
poucos os que se beneficiarão dos possíveis bons resultados dessas pesquisas.
Óbvio, o beneficiário será só quem poderá pagar, e muito, por eles.
O
programa vai permitir (em alguns casos, já está permitindo) que doenças hereditárias
sejam evitadas ainda no nascedouro, no ventre materno, com a simples
substituição dos genes defeituosos nos embriões humanos, por seus
correspondentes sadios. Reitero, as bases de nucleotídeos mapeadas (3 bilhões)
seriam "letras", arranjadas em "palavras" e
"sentenças", com instruções para a produção de células. Há, todavia,
muito folclore em torno do assunto. É no que dá quando leigos se metem a tratar
de assuntos que não entendem. Muitos colegas meus, jornalistas, por exemplo,
têm escrito, nos últimos vinte anos, matérias a respeito das quais o mínimo que
se pode dizer é que são RIDÍCULAS. Mais desinformam (ou SÓ desinformam) e não
trazem o menor benefício para ninguém. Mas... Deixa pra lá!
Li,
dia desses, que os cientistas poderão fazer determinadas alterações genéticas
nas pessoas de formas, por exemplo, a que elas suem perfume, acabando assim com
o mau cheiro proveniente do suor. Sei lá, isso está me cheirando a uma
deslavada “barriga”, tão grande, se não maior, que a do “boimate”. Bem, aqui
cabem alguns esclarecimentos para quem não conhece a gíria, o jargão
jornalístico e nem o caso que citei. “Barriga”, nas redações, é como notícias
falsas, portanto não devidamente apuradas, são chamadas. A do “boimate” é a
mais ridícula e simultaneamente mais engraçada das tantas que já vi. Essa
“barrigaça”, ou megabarriga, como queiram, foi perpetrada na edição de 27 de
abril de 1983, na polêmica revista semanal Veja. A insólita matéria, que se
tornou lendária nas redações (pelo menos nas do meu tempo na ativa) foi baseada
em uma piada de 1º de abril (o dia mundial da mentira) do semanário inglês “New
Scientist”.
O
artigo do brincalhão repórter da terra da rainha, não identificado, narrava um
suposto experimento de dois cientistas alemães, Barry McDonald e William Wimpey
(referências às redes de lanchonetes McDonald's e Wimpy), da Universidade de
Hamburgo. A técnica, de acordo com o texto, consistia em uma descarga elétrica
sobre cultura de tomate e células bovinas que ocasionava a fusão de seu
material genético. O resultado, após a fecundação da nova célula, era uma fruta
de casca semelhante ao couro e com discos de proteína animal e tomate,
intercalados em seu interior. Claro que isso é (e sempre será) rigorosamente
impossível. Contudo, um repórter da Veja (cujo nome desconheço e se conhecesse,
não revelaria), acreditou na veracidade dessa brincadeira. Traduziu, e
repercutiu, a anedota, que considerava como a “notícia bomba” do milênio,
dando, até, o nome de “boimate” a esse inexistente e fictício produto. O que
estranho é o fato da matéria esquisita ter passado pelas mãos de pelo menos um
editor, que a “engoliu” sem pestanejar, sendo, portanto, mais responsável pela
“barriga” do que quem a redigiu. Afinal, tinha a prerrogativa de derrubar a
matéria caso visse algo incorreto nela. Mas... não viu e não derrubou. Deu no
que deu.
No
caso do “suor perfumado”, outra óbvia e evidente “barriga”, caso fosse verdade,
muita fábrica de desodorante e de perfume iria à falência se isso ocorresse.
Seria levar a vaidade a extremos. Se bem que as pessoas costumam investir muito
mais em coisas supérfluas, que as tornem mais bonitas ou mais agradáveis, do
que no essencial, no que é útil, necessário e mais: indispensável. Uma
particularidade, que poucos conhecem, é que da infinidade de genes que temos,
os úteis representam apenas 3%, ou algo como 20 mil (mesmo número, ou quase, da
imensa maioria dos outros seres vivos). Os 97% restantes ou são defeituosos, ou
são em duplicata ou jamais são aproveitados. Os pesquisadores chamam-nos de
“lixo genético”. É caso de se questionar se a natureza é previdente, é
perdulária ou é ambas as coisas, dependendo das circunstâncias.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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