Como pássaros
Pedro
J. Bondaczuk
Quem é o “autor”, de
fato, de um poema: o que o compõe ou o que se identifica com seu conteúdo, com
sua mensagem, com sua beleza e transcendência, ou seja, o leitor? A pergunta, à
primeira vista, parece absurda, infantil, surreal, mas talvez não o seja. Ainda
no terreno das aparências, a resposta “parece” rigorosamente óbvia. Tão óbvia
que os que foram provocados pelo questionamento se recusam a dá-la,
limitando-se, não raro, a um riso de galhofa, se tanto. Não é, porém, o que
muitos poetas pensam (certamente, a minoria, mas gente realmente do ramo, com
obra poética consagrada e imortalizada no imaginário popular). Para muitos, o
leitor, que se sensibiliza com um poema, é o autor de fato dele. O poeta, no
caso, é “apenas” uma espécie de instrumento para que ele se materialize. Eu não
diria tanto. Diria, porém, que é co-autor.
Claro, não estou
pensando no aspecto, digamos, comercial da obra, nos direitos autorais. Por
este prisma, o poeta que o compõe, sem dúvida, é o legítimo autor (a menos que
tenha plagiado o poema, mas esta é uma outra história). Jorge Luís Borges foi
um dos tantos que manifestaram crença nessa co-autoria espiritual de uma
composição poética. E expressou-se dessa forma sobre essa crença: “Creio que os
escritores somos amanuenses de algo secreto, que se pode chamar, segundo a
tradição homérica, de ‘musa’; segundo a tradição hebréia, ‘ruach’, o
‘espírito’; ou segundo a fria mitologia moderna, ‘inconsciente’ ou
‘subconsciente’; ou segundo a bela expressão do grande poeta irlandês William
Butler Yeats, a ‘grande memória’”. Pois é, somos co-autores dos magníficos
poemas que nos encantam, emocionam, sensibilizam e, em alguns casos, nos levam
às lágrimas.
Nem toda composição
poética, frise-se, tem esse poder de comoção, de encantamento, de cumplicidade.
Convenhamos, são minoria. Não sei se você, leitor poeta, se sente da mesma
forma como me sinto ao devorar determinados poemas de extrema beleza e verdade,
mas eu identifico-me muito mais com eles do que com os que componho. Ao compor,
sinto-me ‘usado’, mero veículo para concretizar algo que sempre existiu, posto
que sem forma, no inconsciente coletivo. Há uma infinidade de poemas que sinto
que são legitimamente meus, que expressam com exatidão meus pensamentos e
emoções, embora não seja seu verdadeiro autor. Sinto-me, todavia, co-autor.
Umberto Eco, embora não
seja poeta, escreveu o seguinte sobre esse sentimento, que sugeriu também
partilhar: “O fato estético é algo tão evidente, imediato e indefinido quanto o
amor, o gosto da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a presença de
uma mulher, uma montanha ou uma baía. Se ela é sentida de imediato, por que
diluí-la em outras palavras, que certamente serão mais frágeis do que nossos
sentimentos?”. Sim, por que? Para que se torne concreta e partilhável,
provavelmente. E Eco arrematou: “Eu definiria o efeito poético como a
capacidade que um texto oferece de continuar a gerar diferentes leituras, sem
nunca se consumir de todo”.
O poeta francês dos
séculos XIX e XX, Paul Claudel (nome artístico de Louis Charles Athanaïse
Cécile Cerveaux Prosper), foi mais específico: “O poema não é feito dessas
letras que eu espeto como pregos, mas do branco que fica no papel” Ou seja, é feito da reação que causa no
espírito de quem o lê, ou mais especificamente, de quem o “sente”, já que
poesia não é para ser simplesmente lida, mas sobretudo sentida. Cabe aqui o que
o filósofo alemão Friedrich Nietzsche escreveu, em outro contexto (que citei em
um comentário específico sobre Filosofia), mas que cabe a caráter neste mesmo
assunto: “Os leitores extraem dos
livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco
das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno”.
Os que se “encantam” com determinados poemas, são as diligentes
abelhinhas, que extraem das corolas a essência da doçura. Já os que são
indiferentes à poesia (e aos seus encantos, evidentemente) são perigosas
aranhas que extraem das mais delicadas flores das emoções apenas o veneno, se
tanto, para inocular nos incautos. Em geral, aliás, não são nem mesmo os
aracnídeos citados por Nietzsche. Ficam, simplesmente, indiferentes à poesia (e
a toda forma de beleza), como máquinas, como robôs, como insensíveis zumbis,
mortos-vivos no que se refere a sentimentos. E, convenhamos, há muitíssimas
pessoas assim.
Contudo, a melhor explicação sobre o assunto foi a dada por Mário
Quintana. E não a deu em nenhuma crônica, declaração bombástica ou mesmo
entrevista, mas no poema abaixo, que partilho com você, amável leitor, e do
qual me sinto “co-autor” espiritual, que leio, releio, sei de cor e salteado e
repito a todo o momento, para mim e para terceiros:
Como pássaros
“Os
poemas são pássaros
que
chegam não se sabe
de
onde e pousam no
livro
que lês.
Quando
fechas o livro,
eles
alçam vôo como de
um
alçapão.
Eles
não têm pouso nem
porto,
alimentam-se
um instante
em
cada par de mãos e
partem.
E
olhas, então, essas tuas
mãos
vazias, no
maravilhado
espanto de
saberes
que o alimento
deles
já estava em ti”.
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