Wednesday, March 09, 2016

Paradigma da luta das mulheres por igualdade

Pedro J. Bondaczuk

O acesso à educação formal foi a grande, possivelmente a maior, conquista feminina em todos os tempos. Possibilitou às mulheres adquirir conhecimentos que, por milênios eram, estranhamente, restritos somente aos homens. Por conseqüência, a partir de então – coisa relativamente recente de algumas poucas décadas – surgiram milhares, milhões, quiçá bilhões de médicas, jornalistas, engenheiras, advogadas, juízas e vai por aí afora, abrangendo, praticamente, todas as profissões, em várias partes do mundo.

Todavia, neste século XXI, em que já caíram tantos e tão renitentes tabus e paradigmas sem sentido, frutos da ignorância e do preconceito, nem todas as mulheres já podem exercer este direito, que deveria ser inalienável. E os motivos são vários. Vão desde a ausência de escolas nas regiões mais pobres do mundo, notadamente da África, da Ásia, da América Latina e da Oceania, à absurda discriminação, às arcaicas e ultrapassadas tradições machistas, à absurda idéia de inferioridade feminina etc.etc.etc. Há, infelizmente, imensa quantidade de etceteras a considerar nessa questão.

De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), havia, em 2010, por volta de 800 milhões de analfabetos no mundo (e estima-se que essas cifras praticamente não mudaram). Dois terços desse número (qualquer coisa em torno de 540 milhões), são constituídos por mulheres!!! Esse imenso contingente, portanto, é formado por pessoas que, por uma série de razões, não puderam e ainda não podem participar da principal conquista feminina em sua luta pela igualdade de direitos e deveres. Boa parte dessas meninas impedidas de acesso ao que jamais lhes poderia ser negado, ou cerca de 65 milhões, são de uma região específica do Planeta, ou para ser mais exato, da Ásia: de partes do Paquistão e do Afeganistão. E a causa disso não é a falta de escolas por ali, e nem sequer é a oposição de pais retrógrados, nem outro motivo qualquer relacionado com política, ou economia, ou mesmo cultura. É o fanatismo religioso, notadamente de um dos grupos mais radicais que existem na atualidade: o talibã.

Foi a essa retrógrada organização, temida até por governos das potências ocidentais e que não reluta em recorrer à violência quando contrariada em seus interesses, que uma garotinha paquistanesa, na ocasião com apenas doze anos de idade, ousou desafiar. Refiro-me a Malala Youzafsai, de etnia pachto. Essa menina lúcida e determinada por muito pouco não pagou com a vida por sua ousadia. Primeiro, foi ameaçada em inúmeras ocasiões para que silenciasse e parasse de defender o que o talibã considerava heresia. Não silenciou. Por isso, em 9 de outubro de 2012, foi vítima de covarde atentado à bala, dentro de um ônibus, quando retornava para casa, de volta da escola. Foi atingida por um tiro à queima-roupa na cabeça, disparado por um pistoleiro do grupo radical.

Socorrida, ninguém acreditava que viesse a sobreviver. Numa desesperada tentativa de salvá-la, a adolescente foi encaminhada a um hospital de Birmingham, na Inglaterra. E o “milagre” aconteceu. Malala não apenas sobreviveu, como, milagrosamente, recuperou todas suas funções, sem que restassem seqüelas. Mas a garotinha (que completará dezenove anos de idade em julho deste 2016), teimosa como que (ou melhor, determinada) não só não silenciou, após quase perder a vida, como redobrou seu empenho e mantém, até hoje, sua ousada cruzada, estando mais ativa do que nunca. Conquistou, por isso, o coração e as mentes de milhões de pessoas ao redor do mundo. E também dezenas dos mais importantes prêmios internacionais, além de inúmeras honrarias. Reverteu tudo isso em benefício da sua causa. Por conseqüência, tornou-se a personalidade mais jovem da história a conquistar um Nobel (o da Paz), em 2014, quando estava com 17 anos de idade. Malala ainda vive em uma região tão perigosa e explosiva – o Vale de Swat controlado pelo talibã – que chegou a ser proibida de deixar o Paquistão para receber a premiação a que fez jus.

As autoridades paquistanesas alegaram, para justificar esse impedimento, “questões de segurança”. Seu Prêmio Nobel da Paz apenas chegou às suas mãos por ter sido levado, às escondidas, para sua cidade natal pelo cineasta anglo-paquistanês Ali Sevy. Para quem quiser saber mais sobre essa garotinha determinada e exemplar, recomendo a leitura de sua biografia “Eu sou Malala” (Editora Companhia das Letras), que ela escreveu em parceria com a jornalista britânica Christina Lamb. O livro já é best-seller mundial e no Brasil está há várias semanas entre os dez mais vendidos.

Para o leitor ter uma idéia sobre o ambiente em que essa jovem guerreira nasceu, viveu, quase morreu e ainda vive, transcrevo os dois parágrafos iniciais da citada biografia. No primeiro, ela escreve: “No dia em que nasci, as pessoas da nossa aldeia tiveram pena de minha mãe, e ninguém deu os parabéns a meu pai. Vim ao mundo durante a madrugada, quando a última estrela se apaga. Nós, pachtuns, consideramos esse um sinal auspicioso. Meu pai não tinha dinheiro para o hospital ou para uma parteira; então uma vizinha ajudou minha mãe. O primeiro bebê de meus pais foi natimorto, mas eu vim ao mundo chorando e dando pontapés (...)”.

Na sequência, Malala revela: “(...)Nasci menina num lugar onde rifles são disparados em comemoração a um filho, ao passo que as filhas são escondidas atrás de cortinas, sendo seu papel na vida apenas fazer comida e procriar. Para a maioria dos pachtuns, o dia em que nasce uma menina é considerado sombrio. O primo de meu pai, Jehan Sher Khan Yousafzai, foi um dos poucos a nos visitar para celebrar meu nascimento e até mesmo nos deu uma boa soma em dinheiro. Levou uma grande árvore genealógica que remontava até meu trisavô, e que mostrava apenas as linhas de descendência masculina. Meu pai, Ziauddin, é diferente da maior parte dos homens pachtuns”.

Por tudo isso, considero Malala lídimo paradigma da milenar luta feminina pela igualdade de direitos e deveres, simbolizada por este Dia Internacional da Mulher. Sua batalha sempre foi, desde quando menininha de 12 anos – ocasião em que redigiu um blog, sob pseudônimo, na BBC de Londres e “apareceu” para o mundo – pelo acesso das cerca de 65 milhões de meninas paquistanesas e afegãs e das dez vezes isso em tantas outras partes do mundo, ao que nunca, por motivo algum, lhes poderia ser negado, atrapalhado ou impedido: à educação formal, como tantas e tantas e tantas garotas, da maioria dos países da comunidade internacional, já podem fazer.


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