Submergindo no romance
“Manhã Submersa”
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “Manhã
submersa” pode não ser o melhor dos 47 publicados pelo escritor português
Vergílio Ferreira – cujo centenário de nascimento vem sendo celebrado neste ano
de 2016 –, mas é o mais conhecido dos que escreveu e publicou. Aliás, esse tipo
de juízo de valor é sumamente subjetivo, principalmente quando se trata de
avaliar a obra de um autor tão prolífico e de qualidade linearmente superior.
Posso achar, por exemplo, por critérios estritamente pessoais, determinada
publicação excelente. Já outro leitor pode achá-la monótona, ou óbvia, ou
cansativa ou outra coisa qualquer que a deprecie e a torne detestável. Qual das
duas opiniões seria a correta? Provavelmente, nenhuma. Ou, em alguns casos,
ambas. O tal livro pode apresentar virtudes que para mim sejam fundamentais e
defeitos que para o outro leitor deste meu exemplo sejam contundentes e
deploráveis.
No caso de “Manhã
submersa”, considero-a uma obra fascinante, destas que recomendo aos meus
leitores sem pestanejar. É o melhor livro de Vergílio Ferreira? Não sei! Pode
ser que sim, pode ser que não. Afinal, não tive o privilégio de ler os outros
46 que publicou. Não tenho, pois, elementos objetivos de comparação. Todavia, é
do meu pleno agrado, por uma série de razões, tanto pelo conteúdo, quanto pelo
estilo do vitorioso escritor. A julgar, todavia, pela forma com que o próprio
autor tratou esse livro, concluo (talvez afoitamente) que ele não era do seu
pleno agrado. Tanto que “Manhã submersa” foi publicado, pela primeira vez,
quase vinte anos após ser escrito, em 1954. É verdade que teve, depois, várias
republicações. Notadamente, depois de ser adaptado para o cinema, em 1980, por
Lauro Antonio, filme que foi grande sucesso de bilheteria em Portugal.
Se Vergílio não gostava
desse livro, deve ter mudado de idéia quando concordou que se fizesse sua
versão cinematográfica. Tanto que, embora não tendo experiência e formação na
arte de representar, foi o “galã” dessa bem sucedida produção, interpretando um
dos principais papeis: o do Reitor do Seminário onde a história se desenrola
(único personagem do livro, aliás, que não é identificado pelo nome),
contracenando com astros e estrelas consagrados do cinema português, como
Eunice Munhoz, Canto e Castro, Jacinto Ramos e Carlos Wallenstein. Quem
assistiu ao filme garante que Vergílio Ferreira deu um show de interpretação. E
de onde tirei a idéia de que ele não morria de amores pelo livro que ele
próprio escreveu? Desta declaração dele próprio: “Oh, não, não gosto muito do
livro, mas (...) ninguém diz mal de seus livros”.
O crítico português
Júlio Pinheiro, na meticulosa análise que fez dessa obra na revista “Síntese”,
publicada em 7 de março de 2008, atribui seu sucesso, sobretudo após o 25 de
abril de 1974, data da “Revolução dos Cravos Vermelhos”, que depôs a ditadura
de quatro décadas do general Antonio de Oliveira Salazar – e que redundou em
fartas vendas do romance e determinou sucessivas tiragens – a três fatores
fundamentais: “à consideração e fama do autor; ao filme de Lauro Antonio e ao
aproveitamento político da obra como um ataque à Igreja e à educação nos
seminários”. Meu motivo para apreciar tanto esse livro não é nenhum desses. É a
fidelidade com que o autor descreve como é a vida em um internato, com seus
vários tipos – professores, colegas, funcionários – e comportamentos – dramas e
comédias, amizades, amores, ódios etc.etc.etc.
Quem leu “O Ateneu”, de
Raul Pompeia, sabe como é essa realidade. Sabe-a melhor, logicamente, quem já
foi interno. Eu fui. Passei parte considerável da minha vida internado em
colégios bem diferentes, mas todos com algo em comum. E esse “algo” é
apresentado com bastante fidelidade e realismo por Vergílio Ferreira em seu
livro. Júlio Pinheiro escreve o seguinte sobre esse romance autobiográfico: “A
Manhã Submersa recorda a vida passada por António Lopes, o alter-ego de
Vergílio Ferreira, no pequeno Seminário da Diocese da Guarda, situado junto às
Donas e ao Fundão. O narrador foca um passado vivido com tal intensidade que se
torna presente em direção a um futuro. Não se trata de uma memória qualquer,
mas de uma memória interrogativa, angustiante, por vezes trágica, analisando a
consciência como Dostoievski, dando menos valor à visão sociológica tão querida
por Balzac. A memória vive entre a realidade e o imaginário”.
Destaque-se que o
escritor passou seis anos da sua vida – dos doze aos dezoito anos – nesse mesmo
seminário que transformou em cenário do seu romance, misturando fatos e
personagens verídicos (posto que estes últimos com nomes trocados), com ficção
e fantasia. O livro é tão complexo que merece análise mais meticulosa, que me
proponho a fazer oportunamente. Encerro, todavia, estes comentários à margem
com a seguinte constatação do crítico Júlio Pinheiro: “Uma certeza nos resta.
Sendo da Beira, Vergílio foi um inquieto, vivendo sempre à beira de... à beira
da montanha, das coisas, de si mesmo, da religião, do homem, do mundo. Nunca
esteve em, paralisado, mas em movimento, à beira de. Também Manhã Submersa é uma
obra à beira de, com personagens em mudança, fazendo variadas viagens no espaço
e no tempo. Sendo assim também nós ficamos à beira de... à beira do autor, à
beira das suas ideias. Neste modo de estar reside toda a grandeza de Vergílio
Ferreira que pela sua inquietação viverá para sempre à beira do intemporal. Por
tudo isto, o melhor que podemos fazer não é interrogar Vergílio, mas
simplesmente interrogar-nos”.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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