Utopias
que não se sustentam
Pedro J. Bondaczuk
O
professor Lucien Sfez, da Universidade de Paris, cita uma nova utopia dos
tempos modernos: a da saúde absoluta. O
corpo saudável (felizmente) tornou-se ideal, empenho, obsessão de muitas e
muitas pessoas ao redor do mundo. Pena que poucos tenham acesso áquilo que o
viabiliza: alimentação adequada, saudável e equilibrada, exercícios devidamente
compatíveis com o potencial de cada organismo e ritmo de vida sem vícios,
excessos e nem descuidos. A Medicina foi um dos ramos da ciência e da
tecnologia de maior evolução e progresso, em especial a partir da segunda
metade do século XX. Até 1929, os antibióticos, por exemplo, eram
desconhecidos, até que nesse ano, Alexander Fleming descobriu (por puro acaso)
a penicilina. Novos medicamentos, equipamentos ultra-sofisticados de diagnóstico
e técnicas cirúrgicas são desenvolvidos praticamente todos os dias. No outro
extremo, porém, há doenças novas surgindo, atingindo, logicamente, os que não
têm sequer o suficiente para comer.
Lucien
Sfez aborda a questão da saúde em uma entrevista publicada pelo caderno
"Mais!", do jornal Folha de S. Paulo, na edição de 7 de abril de
1996. Afirma: "A Biosfera 2 e o Genoma são o retorno à origem, são o
reencontro de Adão antes da queda, uma espécie da Adão perfeito, o Adão do
paraíso terrestre, geneticamente purificado. O que é a Biosfera 2? O paraíso
terrestre. Do lado do genes, quer se encontrar o puro em si. O homem selvagem.
Os dois projetos se fundem nisso: a origem sonhada, o Éden, antes das doenças e
da poluição".
Mais
adiante, respondendo a uma pergunta do repórter, o professor Sfez acrescenta:
"As utopias mudaram de signo, e a ideologia perdeu a sua base tradicional.
As utopias não se opõem à realidade e a ideologia deixou de ser um signo das
coisas, para se transformar em signo-coisas, coisas-signos. E o inimigo não
está no exterior para ser combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem,
o negro, o judeu, o burguês. O inimigo está dentro de nós, na cidade poluída,
nos nossos genes, na camada de ozônio, na droga, no colesterol, anônimo, e quem
o combate é a tecnociência onipotente. A ideologia está aqui, mas como que
entrelaçada na utopia da saúde perfeita do corpo e do Planeta,
interdependentes. E essa utopia é prática".
De
fato, tem vários dos ingredientes que julgo essenciais. Mas sonho com uma era
em que todas as doenças, tanto do corpo quanto do espírito, sejam erradicadas.
Em que não haja, de um lado, uma raça de gigantes, saudável e longeva, e de
outro, multidões de seres raquíticos, famintos, doentes e frágeis, morrendo de
doenças simples, subprodutos da fome e da extrema miséria, como a diarréia e a
dengue, para não dizer o ebola. A utopia de Sfez, portanto, embora apresente
alguns fragmentos da minha, não é, ainda, ela, na sua integralidade.
Desde
1989, data tomada como marco do fim da Guerra Fria, com a derrubada do Muro de
Berlim e que antecipou a dissolução da União Soviética, dois anos depois, vem
se propalando uma tal de "globalização", que seria uma espécie de
Éden econômico. Apregoa-se nova era, que no entanto ainda não mostrou sua cara.
Não impediu a crise econômica, que ainda penaliza o Primeiro Mundo, mas cujo
reflexo mais perverso recai sobre a infinidade de país pobres da África, Ásia e
América Latina. O "mercado" é deificado e em seu nome são praticados
determinados atos que, em vez de diminuir, ampliam o profundo fosso existente
entre os homens. De um lado, uma minoria perdulária, que desperdiça recursos e
depreda o Planeta e que tudo tem e tudo pode. De outro, dois terços da
humanidade nos limites entre a pobreza e a indigência, o que é inconcebível. A
"globalização" é a nova utopia das classes políticas e econômicas.
Mas não é a minha.
Carlos
Gabaglia Penna, diretor do Comitê Brasileiro do Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente, no artigo "A Sagração Econômica", publicado no dia
12 de abril de 1998, no Jornal do Brasil, informa: "A produção mundial de
bens e serviços ultrapassou US$ 23 trilhões em 1997. De 1987 a 1995, a economia
global expandiu-se em US$ 3,8 trilhões, igual ao total da produção de 1950.
Apesar do crescimento demográfico, a renda per capita mundial passou de US$
1.500 anuais em 1950, para US$ 3.600 em 1995. Desde 1900, enquanto a população
do Planeta triplicava, a economia aumentava 20 vezes, o consumo de combustíveis
fósseis multiplicava-se por 30 e a produção de bens por 50. Cerca de 80% desse
crescimento vertiginoso ocorreram após 1950. São números econômicos que
confirmam o inexorável caminho da civilização industrial para o paraíso. Serão
mesmo?" E Gabaglia acrescenta: "Em 1960, os 20% mais ricos do mundo
tinham uma renda 30 vezes maior do que os 20% mais pobres. Em 1980, essa
relação já era de 45 vezes e, em 1991, a concentração de renda alcançava a
proporção de 61 para 1. Os 60 homens mais ricos do Globo têm mais riqueza do
que a África inteira e boa parte da Ásia juntas". Dados recentes apenas
confirmam essa tendência de hiperconcentração de riquezas em pouquíssimas mãos;
E
Penna conclui: "Com toda a riqueza material, sem paralelo na história
humana, as crescentes mazelas sociais estão aí para quem quiser ver: drogas,
alcoolismo, crime organizado, violência urbana, alienação social. Os suicídios
aumentaram muito nos países ricos. O número de refugiados políticos e
ambientais é o maior desde a Segunda Guerra Mundial. Países como o nosso
apresentam ainda elevadas taxas de favelização, baixa escolaridade, mão-de-obra
infantil e trabalho escravo". Decididamente, a "globalização"
que aí está não é e nem pode ser a minha utopia.
Como
aceitar que, em um mundo globalizado, mais de um bilhão de pessoas passem fome,
quando a natureza tem sido generosa e safras recordes se sucedam de ano para
ano? Como conceber uma pretensa Nova Era na qual 850 milhões de pessoas ao
redor do mundo estejam desempregadas ou subempregadas, fazendo bicos para
sobreviver? Como se ousa insinuar o novo Éden, quando há vinte milhões de
nossos irmãos vivendo em acampamentos de refugiados, vítimas das várias guerras
civis nos quatro quadrantes do Planeta? Onde mais de 100 milhões de
"homeless" fazem das ruas, de vãos de pontes e viadutos seus lares,
vegetando em situação muito mais precária do que os ancestrais das cavernas,
pois nem estas possuem para se abrigar? Onde crianças de oito a onze anos
trocam canetas e cadernos por fuzis e metralhadoras, nas várias guerras étnicas
na África e na Ásia ou nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Salvador, Recife, Campinas etc? Não! Esta não pode ser, e nem é, a minha
utopia!!!.
Desde
a invenção da escrita, milhares de textos foram deixados à posteridade, sobre
uma suposta e desejável "Idade de Ouro", quando os homens teriam
vivido em inocência, o vício da cupidez ainda não havia criado as odiosas
divisões de classe e a humanidade seria harmoniosa e feliz. Provavelmente, os
autores, das mais diversas épocas, lugares e costumes, expressaram somente o
seu ideal, a utopia das utopias. A partir da Renascença, com o advento da era
das grandes navegações, circularam lendas a propósito da existência de um lugar
de plena felicidade. Seria uma ilha, perdida em vastidões oceânicas e isolada do
mundo, para evitar o contágio das pseudocivilizações existentes, mormente as
européias e asiáticas. Foi à procura desse hipotético paraíso que Cristóvão
Colombo aportou na América, julgando estar na Ásia, próximo à procurada
"ilha das especiarias".
O
espanhol Cabeza de Vaca situou esse edênico local no coração da América do Sul,
nos altiplanos andinos, provavelmente nos arredores do Lago Titicaca, no Peru,
ou no centro da Colômbia. Fernão de Magalhães circunavegou o Planeta e julgou
ter descoberto a "ilha de ouro" nas Filipinas, onde morreu em combate
com os nativos locais. Mungo Park e Richard Burton entenderam que esse paraíso
existisse no interior da África e empreenderam, em vão, exaustiva jornada por
vastas extensões desse continente, que lhes exauriu a saúde e abreviou a vida.
Vitus Behring procurou esse lendário lugar no Extremo Norte da Terra, sem
encontrá-lo. Encontrou foi a morte, mas descobriu a passagem entre a Ásia e a
América.
Essa
"ilha de ouro" não existe. Ainda está por ser construída por pessoas
de larga visão e de boa vontade. Sua localização não vai estar em algum
minúsculo pedaço de terra do Pacífico Sul, do Atlântico Norte ou de qualquer
outro dos mares da Terra. Será neste próprio e bizarro planeta azul, em sua
totalidade, assim que seus habitantes reciclarem suas prioridades e se derem
conta da estupidez de acumular bugigangas, como fazem desde que tiveram o
primeiro lampejo de consciência. Embora seja óbvio que deste mundo não levamos
coisa alguma, tão logo a morte – fatalidade biológica que atinge
indistintamente o humilde e o poderoso, o sábio e o néscio, o rico e o
miserável – nivele a todos, mas ao contrário deixamos atos e fatos e gestos de
amor, o ideal das últimas gerações tem sido apenas o de juntar coisas, em geral
inúteis. Voltarei ao assunto.
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