Wednesday, February 25, 2015

Utopias que não se sustentam

Pedro J. Bondaczuk

O professor Lucien Sfez, da Universidade de Paris, cita uma nova utopia dos tempos modernos: a da saúde absoluta.  O corpo saudável (felizmente) tornou-se ideal, empenho, obsessão de muitas e muitas pessoas ao redor do mundo. Pena que poucos tenham acesso áquilo que o viabiliza: alimentação adequada, saudável e equilibrada, exercícios devidamente compatíveis com o potencial de cada organismo e ritmo de vida sem vícios, excessos e nem descuidos. A Medicina foi um dos ramos da ciência e da tecnologia de maior evolução e progresso, em especial a partir da segunda metade do século XX. Até 1929, os antibióticos, por exemplo, eram desconhecidos, até que nesse ano, Alexander Fleming descobriu (por puro acaso) a penicilina. Novos medicamentos, equipamentos ultra-sofisticados de diagnóstico e técnicas cirúrgicas são desenvolvidos praticamente todos os dias. No outro extremo, porém, há doenças novas surgindo, atingindo, logicamente, os que não têm sequer o suficiente para comer.

Lucien Sfez aborda a questão da saúde em uma entrevista publicada pelo caderno "Mais!", do jornal Folha de S. Paulo, na edição de 7 de abril de 1996. Afirma: "A Biosfera 2 e o Genoma são o retorno à origem, são o reencontro de Adão antes da queda, uma espécie da Adão perfeito, o Adão do paraíso terrestre, geneticamente purificado. O que é a Biosfera 2? O paraíso terrestre. Do lado do genes, quer se encontrar o puro em si. O homem selvagem. Os dois projetos se fundem nisso: a origem sonhada, o Éden, antes das doenças e da poluição".

Mais adiante, respondendo a uma pergunta do repórter, o professor Sfez acrescenta: "As utopias mudaram de signo, e a ideologia perdeu a sua base tradicional. As utopias não se opõem à realidade e a ideologia deixou de ser um signo das coisas, para se transformar em signo-coisas, coisas-signos. E o inimigo não está  no exterior para ser combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem, o negro, o judeu, o burguês. O inimigo está dentro de nós, na cidade poluída, nos nossos genes, na camada de ozônio, na droga, no colesterol, anônimo, e quem o combate é a tecnociência onipotente. A ideologia está aqui, mas como que entrelaçada na utopia da saúde perfeita do corpo e do Planeta, interdependentes. E essa utopia é prática".

De fato, tem vários dos ingredientes que julgo essenciais. Mas sonho com uma era em que todas as doenças, tanto do corpo quanto do espírito, sejam erradicadas. Em que não haja, de um lado, uma raça de gigantes, saudável e longeva, e de outro, multidões de seres raquíticos, famintos, doentes e frágeis, morrendo de doenças simples, subprodutos da fome e da extrema miséria, como a diarréia e a dengue, para não dizer o ebola. A utopia de Sfez, portanto, embora apresente alguns fragmentos da minha, não é, ainda, ela, na sua integralidade.

Desde 1989, data tomada como marco do fim da Guerra Fria, com a derrubada do Muro de Berlim e que antecipou a dissolução da União Soviética, dois anos depois, vem se propalando uma tal de "globalização", que seria uma espécie de Éden econômico. Apregoa-se nova era, que no entanto ainda não mostrou sua cara. Não impediu a crise econômica, que ainda penaliza o Primeiro Mundo, mas cujo reflexo mais perverso recai sobre a infinidade de país pobres da África, Ásia e América Latina. O "mercado" é deificado e em seu nome são praticados determinados atos que, em vez de diminuir, ampliam o profundo fosso existente entre os homens. De um lado, uma minoria perdulária, que desperdiça recursos e depreda o Planeta e que tudo tem e tudo pode. De outro, dois terços da humanidade nos limites entre a pobreza e a indigência, o que é inconcebível. A "globalização" é a nova utopia das classes políticas e econômicas. Mas não é a minha.

Carlos Gabaglia Penna, diretor do Comitê Brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, no artigo "A Sagração Econômica", publicado no dia 12 de abril de 1998, no Jornal do Brasil, informa: "A produção mundial de bens e serviços ultrapassou US$ 23 trilhões em 1997. De 1987 a 1995, a economia global expandiu-se em US$ 3,8 trilhões, igual ao total da produção de 1950. Apesar do crescimento demográfico, a renda per capita mundial passou de US$ 1.500 anuais em 1950, para US$ 3.600 em 1995. Desde 1900, enquanto a população do Planeta triplicava, a economia aumentava 20 vezes, o consumo de combustíveis fósseis multiplicava-se por 30 e a produção de bens por 50. Cerca de 80% desse crescimento vertiginoso ocorreram após 1950. São números econômicos que confirmam o inexorável caminho da civilização industrial para o paraíso. Serão mesmo?" E Gabaglia acrescenta: "Em 1960, os 20% mais ricos do mundo tinham uma renda 30 vezes maior do que os 20% mais pobres. Em 1980, essa relação já era de 45 vezes e, em 1991, a concentração de renda alcançava a proporção de 61 para 1. Os 60 homens mais ricos do Globo têm mais riqueza do que a África inteira e boa parte da Ásia juntas". Dados recentes apenas confirmam essa tendência de hiperconcentração de riquezas em pouquíssimas mãos;

E Penna conclui: "Com toda a riqueza material, sem paralelo na história humana, as crescentes mazelas sociais estão aí para quem quiser ver: drogas, alcoolismo, crime organizado, violência urbana, alienação social. Os suicídios aumentaram muito nos países ricos. O número de refugiados políticos e ambientais é o maior desde a Segunda Guerra Mundial. Países como o nosso apresentam ainda elevadas taxas de favelização, baixa escolaridade, mão-de-obra infantil e trabalho escravo". Decididamente, a "globalização" que aí está não é e nem pode ser a minha utopia.

Como aceitar que, em um mundo globalizado, mais de um bilhão de pessoas passem fome, quando a natureza tem sido generosa e safras recordes se sucedam de ano para ano? Como conceber uma pretensa Nova Era na qual 850 milhões de pessoas ao redor do mundo estejam desempregadas ou subempregadas, fazendo bicos para sobreviver? Como se ousa insinuar o novo Éden, quando há vinte milhões de nossos irmãos vivendo em acampamentos de refugiados, vítimas das várias guerras civis nos quatro quadrantes do Planeta? Onde mais de 100 milhões de "homeless" fazem das ruas, de vãos de pontes e viadutos seus lares, vegetando em situação muito mais precária do que os ancestrais das cavernas, pois nem estas possuem para se abrigar? Onde crianças de oito a onze anos trocam canetas e cadernos por fuzis e metralhadoras, nas várias guerras étnicas na África e na Ásia ou nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Campinas etc? Não! Esta não pode ser, e nem é, a minha utopia!!!.

Desde a invenção da escrita, milhares de textos foram deixados à posteridade, sobre uma suposta e desejável "Idade de Ouro", quando os homens teriam vivido em inocência, o vício da cupidez ainda não havia criado as odiosas divisões de classe e a humanidade seria harmoniosa e feliz. Provavelmente, os autores, das mais diversas épocas, lugares e costumes, expressaram somente o seu ideal, a utopia das utopias. A partir da Renascença, com o advento da era das grandes navegações, circularam lendas a propósito da existência de um lugar de plena felicidade. Seria uma ilha, perdida em vastidões oceânicas e isolada do mundo, para evitar o contágio das pseudocivilizações existentes, mormente as européias e asiáticas. Foi à procura desse hipotético paraíso que Cristóvão Colombo aportou na América, julgando estar na Ásia, próximo à procurada "ilha das especiarias".

O espanhol Cabeza de Vaca situou esse edênico local no coração da América do Sul, nos altiplanos andinos, provavelmente nos arredores do Lago Titicaca, no Peru, ou no centro da Colômbia. Fernão de Magalhães circunavegou o Planeta e julgou ter descoberto a "ilha de ouro" nas Filipinas, onde morreu em combate com os nativos locais. Mungo Park e Richard Burton entenderam que esse paraíso existisse no interior da África e empreenderam, em vão, exaustiva jornada por vastas extensões desse continente, que lhes exauriu a saúde e abreviou a vida. Vitus Behring procurou esse lendário lugar no Extremo Norte da Terra, sem encontrá-lo. Encontrou foi a morte, mas descobriu a passagem entre a Ásia e a América.

Essa "ilha de ouro" não existe. Ainda está por ser construída por pessoas de larga visão e de boa vontade. Sua localização não vai estar em algum minúsculo pedaço de terra do Pacífico Sul, do Atlântico Norte ou de qualquer outro dos mares da Terra. Será neste próprio e bizarro planeta azul, em sua totalidade, assim que seus habitantes reciclarem suas prioridades e se derem conta da estupidez de acumular bugigangas, como fazem desde que tiveram o primeiro lampejo de consciência. Embora seja óbvio que deste mundo não levamos coisa alguma, tão logo a morte – fatalidade biológica que atinge indistintamente o humilde e o poderoso, o sábio e o néscio, o rico e o miserável – nivele a todos, mas ao contrário deixamos atos e fatos e gestos de amor, o ideal das últimas gerações tem sido apenas o de juntar coisas, em geral inúteis. Voltarei ao assunto.


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