Obsessão pelo corpo
perfeito
Pedro
J. Bondaczuk
A obsessão de Yukio
Mishima (ou uma delas, pois parece que tinha diversas) era o empenho pelo corpo
perfeito, por músculos ao mesmo tempo desenvolvidos, mas elásticos na medida
certa, que lhe assegurassem máxima flexibilidade e eficiência. Foi, na maior
parte da vida, até sua dramática e surpreendente morte, cultor apaixonado do
físico. É de se supor que essa atitude tinha muito (ou tudo) a ver com a
educação que recebeu na infância, sobretudo da avó paterna, Natsu, sob cuja
tutela permaneceu desde que era bebê até os doze anos de idade. Não seria de se
estranhar se essa obsessão se devesse às histórias que ouviu na meninice sobre
feitos heróicos e façanhas memoráveis de seus ancestrais samurais.
Todavia, um dos maiores
traumas que Mishima sofreu e do qual parece nunca ter se recuperado por
completo, ocorreu já em idade adulta. Foi o fato de não poder participar de
batalhas na Segunda Guerra Mundial em defesa da pátria e do Imperador, no qual
vislumbrava uma divindade a guiar os passos e destinos dos japoneses. Diga-se
de passagem que foi convocado para o Exército, mas acabou reprovado nos exames
físicos, em decorrência da tuberculose que o acometera tempos antes da
convocação. Ainda assim, não foi dispensado. Foi designado pelas autoridades
para trabalhar como operário em uma fábrica de aviões de combate.
Mishima interpretou o
fato de não poder defender seu país nos campos de batalha como a maior
humilhação da sua vida. Ao longo dos anos, sempre que o assunto vinha à baila,
nunca escondeu sua mágoa por esse fato, como que se culpando por ter ficado
doente. Isso se tornou, para ele, trauma dilacerante, lembrança muito amarga,
da qual jamais conseguiu se livrar. O que mais lhe doía era o fato de ter
testemunhado a morte de muitos companheiros, sem nada poder fazer, sem
condições, sobretudo, de oferecer a vida como prova do profundo respeito e
infinita reverência pelo imperador.
Um dos seus livros mais famosos e mais
apreciados, o romance “O templo do pavilhão dourado”, tem por cenário,
justamente, a Segunda Guerra Mundial, com seus dramas, horrores, mas também com
atos de heroísmo, de abnegação e de supremo sacrifício pela pátria. Em meio a
tanto drama, o obcecado escritor japonês consegue vislumbrar beleza. Mishima
pode ser classificado, sem nenhum exagero, como narcisista, ou mais, como
protótipo acabado e clássico do narcisismo.
O jornalista e
professor da Faculdade Atlântico de Santos, Gil Francisco, escreve o seguinte a
esse propósito: “O amor pela própria imagem (narcisismo) fez com que Mishima
cultivasse por mais de dez anos seu corpo
para poder matá-lo ritualmente da maneira mais pública possível. Em ‘Sol e
aço’, publicado poucos meses antes de sua morte, como seu último testamento,
Mishima descreve o florescimento de seu próprio narcisismo e sua compreensão
gradual de que a carne é tudo”. E acrescenta, na sequência: “Para ele, o corpo
é o que se é, e um corpo fraco e vacilante não tem outra saída senão conter um
espírito correspondente. Mesmo assim, Mishima desejava uma vida do físico, da
ação, uma vida distante das palavras e venerando a saúde e a beleza do físico”.
A transformação do seu
corpo, de um sujeito franzino e frágil, para um homem musculoso e forte,
começou em 1955, quando estava com trinta anos de idade. Foi quando
estabeleceu, e cumpriu obsessivamente, intenso programa de adestramento físico,
que incluía levantamento de pesos e aprendizado de várias artes marciais, não
tardando em se tornar perito em diversas formas de luta. Pouco depois, já com
físico avantajado, com músculos bem definidos e “zero” de gordura, submeteu-se
a treinamento militar na Base de Sietai, junto com um grupo de estudantes
universitários, após alistar-se, voluntariamente, no Exército de Auto-Defesa
japonês. Um ano depois, influenciado pelo conceito de bunbun-ryodô – ou seja, o
caminho combinado do erudito e do guerreiro ou a habilidade em ambas as artes:
literária e militar – formou o Tatenokai, ou “Sociedade da Armadura”, entidade
paramilitar de extrema-direita, cujos membros eram, todos, peritos em artes
marciais e estudiosos do “Bushido” (cujo significado literal é “caminho do
guerreiro”).
Trata-se de um código
de conduta e modo de vida dos samurais, desenvolvido entre os séculos IX e XII.
Baseava-se na frugalidade, fidelidade, aprimoramento nas artes marciais,
maestria e honra até a morte. Todavia, a maior obsessão de Yukio Mishima era a
restauração de um Japão apegado às tradições milenares que, na sua visão, foram
corrompidas após a rendição japonesa ao cabo da Segunda Guerra Mundial. A
escritora Darci Kusano, em seu livro “Yukio Mishima: o homem de teatro e de
cinema” (Editora Perspectiva) escreveu: “Em um de seus textos jornalísticos
mais conhecidos, o escritor profetizou: ‘Se continuar assim, o Japão
desaparecerá e no seu lugar restará uma grande potência econômica, inorgânica,
vazia, neutra, rica e astuta num canto do Extremo Oriente’.
E acrescentou: “‘O
homem moderno é quase destituído do desejo dos antigos gregos de viver com
beleza e com beleza morrer’, declara o autor em ‘Sol e Aço’, o seu menor
tratado sobre o corpo. Ele acreditava que é importante morrer por algo, isto é,
pela defesa da cultura, cujo símbolo é o imperador’, não o imperador enquanto
pessoa física, mas o imperador como uma idéia cultural. Por fim, a obsessão
pelo pensamento com ação levou Mishima a procurar a fusão de arte e vida,
estética e ideologia, arte e ação. O que culminou no seu trágico final através
do seppuku, a 25 de novemro de 1970, no Quartel General de Ichigaya em Tóquio,
quando ele dramatizou e protagonizou sem falhas a morte ritual do samurai”.
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