Wednesday, February 18, 2015

Obsessão pelo corpo perfeito

Pedro J. Bondaczuk

A obsessão de Yukio Mishima (ou uma delas, pois parece que tinha diversas) era o empenho pelo corpo perfeito, por músculos ao mesmo tempo desenvolvidos, mas elásticos na medida certa, que lhe assegurassem máxima flexibilidade e eficiência. Foi, na maior parte da vida, até sua dramática e surpreendente morte, cultor apaixonado do físico. É de se supor que essa atitude tinha muito (ou tudo) a ver com a educação que recebeu na infância, sobretudo da avó paterna, Natsu, sob cuja tutela permaneceu desde que era bebê até os doze anos de idade. Não seria de se estranhar se essa obsessão se devesse às histórias que ouviu na meninice sobre feitos heróicos e façanhas memoráveis de seus ancestrais samurais.

Todavia, um dos maiores traumas que Mishima sofreu e do qual parece nunca ter se recuperado por completo, ocorreu já em idade adulta. Foi o fato de não poder participar de batalhas na Segunda Guerra Mundial em defesa da pátria e do Imperador, no qual vislumbrava uma divindade a guiar os passos e destinos dos japoneses. Diga-se de passagem que foi convocado para o Exército, mas acabou reprovado nos exames físicos, em decorrência da tuberculose que o acometera tempos antes da convocação. Ainda assim, não foi dispensado. Foi designado pelas autoridades para trabalhar como operário em uma fábrica de aviões de combate.

Mishima interpretou o fato de não poder defender seu país nos campos de batalha como a maior humilhação da sua vida. Ao longo dos anos, sempre que o assunto vinha à baila, nunca escondeu sua mágoa por esse fato, como que se culpando por ter ficado doente. Isso se tornou, para ele, trauma dilacerante, lembrança muito amarga, da qual jamais conseguiu se livrar. O que mais lhe doía era o fato de ter testemunhado a morte de muitos companheiros, sem nada poder fazer, sem condições, sobretudo, de oferecer a vida como prova do profundo respeito e infinita reverência pelo imperador.

 Um dos seus livros mais famosos e mais apreciados, o romance “O templo do pavilhão dourado”, tem por cenário, justamente, a Segunda Guerra Mundial, com seus dramas, horrores, mas também com atos de heroísmo, de abnegação e de supremo sacrifício pela pátria. Em meio a tanto drama, o obcecado escritor japonês consegue vislumbrar beleza. Mishima pode ser classificado, sem nenhum exagero, como narcisista, ou mais, como protótipo acabado e clássico do narcisismo.

O jornalista e professor da Faculdade Atlântico de Santos, Gil Francisco, escreve o seguinte a esse propósito: “O amor pela própria imagem (narcisismo) fez com que Mishima cultivasse  por mais de dez anos seu corpo para poder matá-lo ritualmente da maneira mais pública possível. Em ‘Sol e aço’, publicado poucos meses antes de sua morte, como seu último testamento, Mishima descreve o florescimento de seu próprio narcisismo e sua compreensão gradual de que a carne é tudo”. E acrescenta, na sequência: “Para ele, o corpo é o que se é, e um corpo fraco e vacilante não tem outra saída senão conter um espírito correspondente. Mesmo assim, Mishima desejava uma vida do físico, da ação, uma vida distante das palavras e venerando a saúde e a beleza do físico”.

A transformação do seu corpo, de um sujeito franzino e frágil, para um homem musculoso e forte, começou em 1955, quando estava com trinta anos de idade. Foi quando estabeleceu, e cumpriu obsessivamente, intenso programa de adestramento físico, que incluía levantamento de pesos e aprendizado de várias artes marciais, não tardando em se tornar perito em diversas formas de luta. Pouco depois, já com físico avantajado, com músculos bem definidos e “zero” de gordura, submeteu-se a treinamento militar na Base de Sietai, junto com um grupo de estudantes universitários, após alistar-se, voluntariamente, no Exército de Auto-Defesa japonês. Um ano depois, influenciado pelo conceito de bunbun-ryodô – ou seja, o caminho combinado do erudito e do guerreiro ou a habilidade em ambas as artes: literária e militar – formou o Tatenokai, ou “Sociedade da Armadura”, entidade paramilitar de extrema-direita, cujos membros eram, todos, peritos em artes marciais e estudiosos do “Bushido” (cujo significado literal é “caminho do guerreiro”).

Trata-se de um código de conduta e modo de vida dos samurais, desenvolvido entre os séculos IX e XII. Baseava-se na frugalidade, fidelidade, aprimoramento nas artes marciais, maestria e honra até a morte. Todavia, a maior obsessão de Yukio Mishima era a restauração de um Japão apegado às tradições milenares que, na sua visão, foram corrompidas após a rendição japonesa ao cabo da Segunda Guerra Mundial. A escritora Darci Kusano, em seu livro “Yukio Mishima: o homem de teatro e de cinema” (Editora Perspectiva) escreveu: “Em um de seus textos jornalísticos mais conhecidos, o escritor profetizou: ‘Se continuar assim, o Japão desaparecerá e no seu lugar restará uma grande potência econômica, inorgânica, vazia, neutra, rica e astuta num canto do Extremo Oriente’.

E acrescentou: “‘O homem moderno é quase destituído do desejo dos antigos gregos de viver com beleza e com beleza morrer’, declara o autor em ‘Sol e Aço’, o seu menor tratado sobre o corpo. Ele acreditava que é importante morrer por algo, isto é, pela defesa da cultura, cujo símbolo é o imperador’, não o imperador enquanto pessoa física, mas o imperador como uma idéia cultural. Por fim, a obsessão pelo pensamento com ação levou Mishima a procurar a fusão de arte e vida, estética e ideologia, arte e ação. O que culminou no seu trágico final através do seppuku, a 25 de novemro de 1970, no Quartel General de Ichigaya em Tóquio, quando ele dramatizou e protagonizou sem falhas a morte ritual do samurai”.


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