Admirável na forma e
terrível no conteúdo
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “Admirável
mundo novo”, escrito em 1931 por Aldous Huxley e publicado um ano depois, em
1932, merece o adjetivo do título que, no entanto, não cabe à sociedade do
futuro que ele criou. É uma obra que, de fato, “merece admiração”. “Que
assombra”. “Que deixa estupefato”. “Excelente”, “Irrepreensível”. “Perfeita”.
Todos estes são os significados da palavra, originada do latim
“admirabile”, conforme a define qualquer
dicionário da língua portuguesa. É, sem tirar e nem pôr, incontestável
obra-prima. E não somente da ficção científica, mas, e principalmente, da
literatura mundial.
Mas é um livro que,
embora se trate de romance, não é para ser lido como tal. Ou seja, de forma
apressada, desatenta, descuidada, de olho, somente, no enredo, sem atentar para
a idéia central que o autor pretendeu transmitir. Exige uma leitura como se
fosse uma obra de filosofia, ou como um ensaio complexo, desses que requerem
profundas reflexões, para não se perder nada do seu inquietante (terrível)
conteúdo. É o que procurarei fazer, nos próximos dias, para dissecar seus
principais aspectos, torcendo, evidentemente, para que o mundo não seja jamais
como o descrito por Huxley, posto que corramos riscos reais de que possa vir a
ser assim.
Embora pretenda
detalhar seu enredo, este pode ser, genericamente, resumido no seguinte:
trata-se da narrativa de um hipotético futuro (que Huxley não determina quando
pode vir a acontecer), em que as pessoas são precondicionadas biologicamente (e
condicionadas psicologicamente) a viverem em harmonia com as leis e regras
sociais. “E isso não seria bom?”, perguntará o leitor que não leu “Admirável
mundo novo”. Talvez fosse, se as pessoas escolhessem livremente, sem nenhuma coação, essas
condições. Contudo, elas não têm escolha. Vivem em uma sociedade, organizada em
rígidas castas, sem a menor possibilidade de mobilidade social. Nascem e morrem
na mesmíssima condição que lhes é4 predeterminada. Nesse futuro, imaginado por
Huxley, não existem nem ética religiosa e nem valores morais. Aliás, as pessoas
são precondicionadas a sequer pensar.
Na eventualidade de
terem dúvidas e/ou insegurança (coisas raras ali), estas seriam dissipadas
mediante uma droga, sem efeitos colaterais (pelo menos aparentes), cujo nome é
“soma”. Ou seja, eram dopadas e, com isso, ficavam alheias à realidade. O amor,
como o conhecemos, é abolido, ou, para ser mais exato, é erradicado. As
relações sexuais existem, mas têm caráter meramente recreativo, de lazer, e não
procriativo, como atualmente (e sempre foi). Os bebês são gerados por
inseminação artificial, com espermas e óvulos selecionados de acordo com a
casta que o sistema pretendia atribuir ao novo ser. Dependendo da categoria
genética a que determinado grupo pertencia (Alfa+, Alfa, Beta, Gama, Delta ou
Épsilon), o respectivo embrião era tratado com substâncias diferentes, no
período de gestação, que se dava exclusivamente em incubadoras.
Não havia, pois, pai e
nem mãe e nem família. O lema, naquela sociedade, era “cada um pertence a
todos”. Qualquer coisa que pudesse desestabilizar uma pessoa e, assim,
atrapalhar a produção, era eliminada. Afinal, Huxley deixa claro que a
sociedade que descreveu representa o extremo do capitalismo, levado ao
paroxismo, onde o que conta é o lucro máximo, com zero ou algo próximo disso de
custo. As castas superiores originavam-se de óvulos de superioridade biológica,
fertilizados por espermas biologicamente superiores. Além disso, recebiam o
melhor tratamento pré-natal possível. Já as castas inferiores, bem mais
numerosas, eram tratadas de forma muito diferente: provinham de óvulos
inferiores, fertilizados por esperma inferior. Além disso, passavam por um
processo denominado Bokanovsky (noventa e seis gêmeos idênticos retirados de um
só ovo) e eram tratados, na fase pré natal, com álcool e outros venenos
proteínicos.
A sociedade retratada
em “Admirável mundo novo”, embora, aparentemente, sem recorrer à violência
física ostensiva, é, em muitos aspectos (no meu entender, em todos), muito mais
violenta, perversa e desumana que a Oceania criada por George Orwell, no
romance “1984”, dominada pelo onipresente “Big Brother”. Aliás, o livro de
Aldous Huxley foi escrito 17 anos antes que o do seu discípulo. Ressalte-se que
na época em que o escreveu, o mundo não havia, ainda, conhecido os horrores nem
do nazifascismo e nem do stalinismo, que recém começava, já que os famosos
“Processos de Moscou”, levados a cabo por Joseph Stalin, haviam se iniciado um
ano antes, em 1930.
A advogada Maria Clara
Corrêa Tenório, especializada em Ciências Sociais, escreveu precioso ensaio a
propósito do livro de Aldous Huxley, intitulado “O Admirável Mundo Novo: fábula
científica ou pesadelo virtual?”, a que tive acesso. Em determinado trecho da
sua meticulosa (e preciosa) análise, ela observa: “Mas nos parece que ele
(Huxley), agora já tendo vivido a experiência do nazismo e do stalinismo, preocupa-se mais com a possibilidade de uma
ditadura totalitária, não nos moldes semi-violentos do Admirável Mundo Novo,
mas semelhante à obra 1984 de Orwell, com a qual estabelece comparações. Ele
descarta a possibilidade dessa última via ser seguida pela humanidade”. Maria
Clara refere-se, aqui, ao livro “Retorno ao Admirável Mundo Novo”, ensaio
datado de 1957, em que Huxley enfatiza uma série de coisas, das que havia
previsto, que já havia acontecido naquela ocasião. E transcreve este parágrafo
da referida obra:
“A recente evolução na Rússia, e avanços recentes no
campo da ciência e da tecnologia retiraram ao livro de Orwell uma parte da sua
horrenda verossimilhança. Mas sustentando neste momento que as Grandes
Potências podem abster-se algum tanto de nos destruírem, é lícito dizer que
tudo se apresenta agora como se todas as vantagens pareçam mais a favor de algo
como o Admirável Mundo Novo do que de algo como 1984”. E complementa: “O
controle do comportamento indesejável por intermédio do castigo é menos eficaz,
no fim das contas, do que o controle por meio
de reforço do comportamento desejável mediante recompensas. (...) A punição
trava temporariamente o comportamento indesejável, mas não suprime
definitivamente a tendência da vítima a sentir-se bem ao comportar-se desse
modo”.
Para encerrar estas
reflexões de hoje, nada é mais oportuno do que a reprodução do parágrafo com que
Maria Clara encerra seu magnífico ensaio, em que diz: “Como Huxley e tantos outros, tentamos
imaginar a civilização do futuro. Desse modo, é impossível não deixar de se
questionar: E o futuro? Será o pesadelo da excessiva falta de ordem, em que,
ainda, vivemos ou da ordem em excesso da “fábula” de Huxley? Será o mundo
virtual de Matríx, ou ditatorial de 1984 ? Ou talvez, “o nada”? A extinção da
raça humana numa guerra nuclear? O horror ao “novo mundo” pode nos conduzir ao
desespero e ao suicídio, como nosso amigo Selvagem do Admirável Mundo Novo”.
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