Sunday, February 01, 2015

Admirável na forma e terrível no conteúdo

Pedro J. Bondaczuk

O livro “Admirável mundo novo”, escrito em 1931 por Aldous Huxley e publicado um ano depois, em 1932, merece o adjetivo do título que, no entanto, não cabe à sociedade do futuro que ele criou. É uma obra que, de fato, “merece admiração”. “Que assombra”. “Que deixa estupefato”. “Excelente”, “Irrepreensível”. “Perfeita”. Todos estes são os significados da palavra, originada do latim “admirabile”,  conforme a define qualquer dicionário da língua portuguesa. É, sem tirar e nem pôr, incontestável obra-prima. E não somente da ficção científica, mas, e principalmente, da literatura mundial.

Mas é um livro que, embora se trate de romance, não é para ser lido como tal. Ou seja, de forma apressada, desatenta, descuidada, de olho, somente, no enredo, sem atentar para a idéia central que o autor pretendeu transmitir. Exige uma leitura como se fosse uma obra de filosofia, ou como um ensaio complexo, desses que requerem profundas reflexões, para não se perder nada do seu inquietante (terrível) conteúdo. É o que procurarei fazer, nos próximos dias, para dissecar seus principais aspectos, torcendo, evidentemente, para que o mundo não seja jamais como o descrito por Huxley, posto que corramos riscos reais de que possa vir a ser assim.

Embora pretenda detalhar seu enredo, este pode ser, genericamente, resumido no seguinte: trata-se da narrativa de um hipotético futuro (que Huxley não determina quando pode vir a acontecer), em que as pessoas são precondicionadas biologicamente (e condicionadas psicologicamente) a viverem em harmonia com as leis e regras sociais. “E isso não seria bom?”, perguntará o leitor que não leu “Admirável mundo novo”. Talvez fosse, se as pessoas escolhessem  livremente, sem nenhuma coação, essas condições. Contudo, elas não têm escolha. Vivem em uma sociedade, organizada em rígidas castas, sem a menor possibilidade de mobilidade social. Nascem e morrem na mesmíssima condição que lhes é4 predeterminada. Nesse futuro, imaginado por Huxley, não existem nem ética religiosa e nem valores morais. Aliás, as pessoas são precondicionadas a sequer pensar.

Na eventualidade de terem dúvidas e/ou insegurança (coisas raras ali), estas seriam dissipadas mediante uma droga, sem efeitos colaterais (pelo menos aparentes), cujo nome é “soma”. Ou seja, eram dopadas e, com isso, ficavam alheias à realidade. O amor, como o conhecemos, é abolido, ou, para ser mais exato, é erradicado. As relações sexuais existem, mas têm caráter meramente recreativo, de lazer, e não procriativo, como atualmente (e sempre foi). Os bebês são gerados por inseminação artificial, com espermas e óvulos selecionados de acordo com a casta que o sistema pretendia atribuir ao novo ser. Dependendo da categoria genética a que determinado grupo pertencia (Alfa+, Alfa, Beta, Gama, Delta ou Épsilon), o respectivo embrião era tratado com substâncias diferentes, no período de gestação, que se dava exclusivamente em incubadoras.

Não havia, pois, pai e nem mãe e nem família. O lema, naquela sociedade, era “cada um pertence a todos”. Qualquer coisa que pudesse desestabilizar uma pessoa e, assim, atrapalhar a produção, era eliminada. Afinal, Huxley deixa claro que a sociedade que descreveu representa o extremo do capitalismo, levado ao paroxismo, onde o que conta é o lucro máximo, com zero ou algo próximo disso de custo. As castas superiores originavam-se de óvulos de superioridade biológica, fertilizados por espermas biologicamente superiores. Além disso, recebiam o melhor tratamento pré-natal possível. Já as castas inferiores, bem mais numerosas, eram tratadas de forma muito diferente: provinham de óvulos inferiores, fertilizados por esperma inferior. Além disso, passavam por um processo denominado Bokanovsky (noventa e seis gêmeos idênticos retirados de um só ovo) e eram tratados, na fase pré natal, com álcool e outros venenos proteínicos.

A sociedade retratada em “Admirável mundo novo”, embora, aparentemente, sem recorrer à violência física ostensiva, é, em muitos aspectos (no meu entender, em todos), muito mais violenta, perversa e desumana que a Oceania criada por George Orwell, no romance “1984”, dominada pelo onipresente “Big Brother”. Aliás, o livro de Aldous Huxley foi escrito 17 anos antes que o do seu discípulo. Ressalte-se que na época em que o escreveu, o mundo não havia, ainda, conhecido os horrores nem do nazifascismo e nem do stalinismo, que recém começava, já que os famosos “Processos de Moscou”, levados a cabo por Joseph Stalin, haviam se iniciado um ano antes, em 1930.

A advogada Maria Clara Corrêa Tenório, especializada em Ciências Sociais, escreveu precioso ensaio a propósito do livro de Aldous Huxley, intitulado “O Admirável Mundo Novo: fábula científica ou pesadelo virtual?”, a que tive acesso. Em determinado trecho da sua meticulosa (e preciosa) análise, ela observa: “Mas nos parece que ele (Huxley), agora já tendo vivido a experiência do nazismo e do stalinismo,  preocupa-se mais com a possibilidade de uma ditadura totalitária, não nos moldes semi-violentos do Admirável Mundo Novo, mas semelhante à obra 1984 de Orwell, com a qual estabelece comparações. Ele descarta a possibilidade dessa última via ser seguida pela humanidade”. Maria Clara refere-se, aqui, ao livro “Retorno ao Admirável Mundo Novo”, ensaio datado de 1957, em que Huxley enfatiza uma série de coisas, das que havia previsto, que já havia acontecido naquela ocasião. E transcreve este parágrafo da referida obra:

“A recente  evolução na Rússia, e avanços recentes no campo da ciência e da tecnologia retiraram ao livro de Orwell uma parte da sua horrenda verossimilhança. Mas sustentando neste momento que as Grandes Potências podem abster-se algum tanto de nos destruírem, é lícito dizer que tudo se apresenta agora como se todas as vantagens pareçam mais a favor de algo como o Admirável Mundo Novo do que de algo como 1984”. E complementa: “O controle do comportamento indesejável por intermédio do castigo é menos eficaz, no fim das contas, do que o controle por meio  de reforço do comportamento desejável mediante recompensas. (...) A punição trava temporariamente o comportamento indesejável, mas não suprime definitivamente a tendência da vítima a sentir-se bem ao comportar-se desse modo”.

Para encerrar estas reflexões de hoje, nada é mais oportuno do que a reprodução do parágrafo com que Maria Clara encerra seu magnífico ensaio, em que diz:  “Como Huxley e tantos outros, tentamos imaginar a civilização do futuro. Desse modo, é impossível não deixar de se questionar: E o futuro? Será o pesadelo da excessiva falta de ordem, em que, ainda, vivemos ou da ordem em excesso da “fábula” de Huxley? Será o mundo virtual de Matríx, ou ditatorial de 1984 ? Ou talvez, “o nada”? A extinção da raça humana numa guerra nuclear? O horror ao “novo mundo” pode nos conduzir ao desespero e ao suicídio, como nosso amigo Selvagem do Admirável Mundo Novo”.


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