Prisões superlotadas com pessoas de
bem
Pedro J. Bondaczuk
A África do Sul vive, provavelmente, o maior impasse
da sua história contemporânea, desde que foi implantada a política
segregacionista do "apartheid", em 1948. As medidas repressivas
crescentes já não surtem mais efeito, no sentido de conter a violência.
Distúrbios a cada dia mais sangrentos sucedem-se, em praticamente todas as
regiões do país, mantendo-o assiduamente nas manchetes internacionais e fazendo
com que o foco das atenções gerais se concentre no seu drama.
É verdade que nem todos os confrontos ali
registrados neste ano foram motivados por questões raciais. A recente guerra
tribal, por exemplo, envolvendo apenas negros, nada teve a ver com as
aspirações da maioria do povo, a de conseguir ser considerado, pelo menos, um
cidadão sul-africano. A de não ser tratado como um estrangeiro na própria terra
em que nasceu.
Mesmo algumas batalhas, cuja causa foi o
"apartheid", nada tiveram a ver com o governo e com o partido de
extrema-direita que ocupa o poder na África do Sul. Nem todo o negro é
integracionista, como também, nem todo o branco é segregacionista. Foi o caso
do que ocorreu até anteontem na imensa favela chamada de
"Crossroads", onde os protagonistas de grandes batalhas foram todos negros.
De um lado, estavam os que foram favorecidos com
migalhas do governo, restos que sobraram da mesa dos poderosos, chamados de
"Vigilantes", cujo papel principal é entregar às autoridades racistas
seus irmãos de cor que sejam favoráveis ao integracionismo. De outro, jovens
partidários do grupo guerrilheiro Congresso Nacional Africano, que vêem em
Nelson Mandela, preso há 22 anos nos cárceres da repressão, mais do que um
líder: uma autêntica esperança. São os chamados "Camaradas", que têm
ainda contra si, nessas batalhas desiguais, a polícia branca sul-africana.
O que está ocorrendo em "Crossroads" é a
miniatura do retrato exato da tragédia sul-africana. Do beco sem saída em que
seus 25 milhões de habitantes chegaram ao aceitarem passivamente idéias anacrônicas,
que classificam seres humanos não por suas aptidões, seu caráter ou aquilo que
realizam, mas pela cor de sua pele e por uma pretensa e falaciosa superioridade
de uma raça sobre outra.
Aliás, esses conceitos nem mesmo são originais.
Foram eles os causadores do maior morticínio registrado na história da
humanidade, durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa favela gigantesca, à sombra
da suntuosidade e opulência de Capetown (Cidade do Cabo), a pouco menos de 20
quilômetros de distância, multidões desvairadas disputam os espólios da
miséria, com paus, com pedras, com unhas, com dentes e com tudo o quanto possa
ser utilizado como armamento.
O estado de emergência, decretado ontem, pelo
presidente sul-africano, além de contraproducente, ditatorial e desumano, é
também a admissão tácita, por parte das autoridades, de que a situação nacional
está se deteriorando com uma velocidade alucinante. Dá uma nítida impressão de
ser um ato de desespero, quase que de pânico.
Com a medida, as prisões, já a partir de ontem,
voltaram a ficar superlotadas. Não de malfeitores, que é a finalidade única
dessas casas de punição, mas de pessoas de bem, de universitários, de
profissionais liberais e de líderes religiosos, gente que trabalha no presente
com os olhos voltados para o futuro. Muitos dos que estão sendo encarcerados
são justamente aqueles que têm domínio sobre as massas alucinadas. Poderiam,
portanto, contê-las, se vierem a estourar fortuitas rebeliões, que o próprio
presidente teme e que por isso pretende evitar, quando da passagem do 10º
aniversário do massacre do Soweto, que será lembrado nesta segunda-feira.
Mas a visão dos racistas está obliterada por seus
conceitos preconceituosos. Eles vêem em seus opositores não os homens
brilhantes que são (e que portanto deveriam merecer todo o respeito), mas meros
"terroristas". Por essa razão, não causará nenhuma estranheza se
durante a vigência de mais este estado de emergência, a África do Sul
mergulhar, de fato, no "banho de sangue" que tanta gente prevê e que
as pessoas de boa vontade do mundo todo tanto temem.
(Artigo publicado na página 7, Internacional, do
Correio Popular, em 13 de junho de 1986)
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