Thursday, February 05, 2015

Prisões superlotadas com pessoas de bem



Pedro J. Bondaczuk



A África do Sul vive, provavelmente, o maior impasse da sua história contemporânea, desde que foi implantada a política segregacionista do "apartheid", em 1948. As medidas repressivas crescentes já não surtem mais efeito, no sentido de conter a violência. Distúrbios a cada dia mais sangrentos sucedem-se, em praticamente todas as regiões do país, mantendo-o assiduamente nas manchetes internacionais e fazendo com que o foco das atenções gerais se concentre no seu drama.

É verdade que nem todos os confrontos ali registrados neste ano foram motivados por questões raciais. A recente guerra tribal, por exemplo, envolvendo apenas negros, nada teve a ver com as aspirações da maioria do povo, a de conseguir ser considerado, pelo menos, um cidadão sul-africano. A de não ser tratado como um estrangeiro na própria terra em que nasceu.

Mesmo algumas batalhas, cuja causa foi o "apartheid", nada tiveram a ver com o governo e com o partido de extrema-direita que ocupa o poder na África do Sul. Nem todo o negro é integracionista, como também, nem todo o branco é segregacionista. Foi o caso do que ocorreu até anteontem na imensa favela chamada de "Crossroads", onde os protagonistas de grandes batalhas foram todos negros.

De um lado, estavam os que foram favorecidos com migalhas do governo, restos que sobraram da mesa dos poderosos, chamados de "Vigilantes", cujo papel principal é entregar às autoridades racistas seus irmãos de cor que sejam favoráveis ao integracionismo. De outro, jovens partidários do grupo guerrilheiro Congresso Nacional Africano, que vêem em Nelson Mandela, preso há 22 anos nos cárceres da repressão, mais do que um líder: uma autêntica esperança. São os chamados "Camaradas", que têm ainda contra si, nessas batalhas desiguais, a polícia branca sul-africana.

O que está ocorrendo em "Crossroads" é a miniatura do retrato exato da tragédia sul-africana. Do beco sem saída em que seus 25 milhões de habitantes chegaram ao aceitarem passivamente idéias anacrônicas, que classificam seres humanos não por suas aptidões, seu caráter ou aquilo que realizam, mas pela cor de sua pele e por uma pretensa e falaciosa superioridade de uma raça sobre outra.

Aliás, esses conceitos nem mesmo são originais. Foram eles os causadores do maior morticínio registrado na história da humanidade, durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa favela gigantesca, à sombra da suntuosidade e opulência de Capetown (Cidade do Cabo), a pouco menos de 20 quilômetros de distância, multidões desvairadas disputam os espólios da miséria, com paus, com pedras, com unhas, com dentes e com tudo o quanto possa ser utilizado como armamento.

O estado de emergência, decretado ontem, pelo presidente sul-africano, além de contraproducente, ditatorial e desumano, é também a admissão tácita, por parte das autoridades, de que a situação nacional está se deteriorando com uma velocidade alucinante. Dá uma nítida impressão de ser um ato de desespero, quase que de pânico.

Com a medida, as prisões, já a partir de ontem, voltaram a ficar superlotadas. Não de malfeitores, que é a finalidade única dessas casas de punição, mas de pessoas de bem, de universitários, de profissionais liberais e de líderes religiosos, gente que trabalha no presente com os olhos voltados para o futuro. Muitos dos que estão sendo encarcerados são justamente aqueles que têm domínio sobre as massas alucinadas. Poderiam, portanto, contê-las, se vierem a estourar fortuitas rebeliões, que o próprio presidente teme e que por isso pretende evitar, quando da passagem do 10º aniversário do massacre do Soweto, que será lembrado nesta segunda-feira.

Mas a visão dos racistas está obliterada por seus conceitos preconceituosos. Eles vêem em seus opositores não os homens brilhantes que são (e que portanto deveriam merecer todo o respeito), mas meros "terroristas". Por essa razão, não causará nenhuma estranheza se durante a vigência de mais este estado de emergência, a África do Sul mergulhar, de fato, no "banho de sangue" que tanta gente prevê e que as pessoas de boa vontade do mundo todo tanto temem.

(Artigo publicado na página 7, Internacional, do Correio Popular, em 13 de junho de 1986)


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk    

No comments: