Sacrifício da vida por veneração ao imperador
Pedro J. Bondaczuk
“A vida humana é finita mas eu gostaria de viver
para sempre”. Estas palavras
parecem expressar a ideia de uma pessoa prestes a cometer suicídio, tendo
centenas de pessoas por testemunhas? Caso eu não soubesse que foram escritas
por Yukio Mishima, na manhã que antecedeu sua morte, eu jamais suspeitaria. Creio que ninguém nutriria a
mais remota suspeita que se tratava de declaração de alguém determinado à mais
extrema violência contra si próprio. Naquele 25 de novembro de 1970, o escritor
tinha todos os motivos do mundo para se sentir satisfeito e, com certeza,
orgulhoso. Na véspera, havia concluído o último romance da tetralogia “O mar da
fertilidade”, intitulado “A queda do anjo”, cujo desfecho encaminhou, nesse
dia, pelo correio, aos seus editores. Mais uma tarefa sua, como escritor dos
mais requisitados, estava concluída. Mas ele nunca usufruiria de mais este
sucesso, desse novo best-seller que se imporia meses depois. E isso por
deliberação própria, livre e soberana, sem nenhuma espécie de coação.
A bem da verdade, a decisão de cometer o “seppuku” não foi coisa de
momento, um eventual súbito assomo de loucura, desses que às vezes as pessoas
têm e que são incontroláveis. Nada disso. De acordo com seus amigos, pessoas do
seu mais restrito círculo de intimidade, há anos que Mishima vinha dando
indicações que planejava dar cabo da vida. Isso, mesmo confessando, e por
escrito, que gostaria de viver eternamente. Como entender algo assim? Eu não entendo.
Duvido que alguém, sobretudo de mentalidade e cultura diferentes das dele, (ou
seja, a oriental), entenda. O suicídio que cometeu não foi nenhum ato de
desespero, causado por perda irreparável, por algum fracasso ou supremo
desgosto.
Para melhor entendimento da questão, é preciso explicar no que consiste o
tal do “seppuku”. Para tal, recorro a informações colhidas na enciclopédia
eletrônica Wikipédia, já que se trata de assunto com o qual não estou sequer
minimamente familiarizado. O significado literal dessa palavra é “cortar o
ventre”. É nisso que essa prática, grosso modo, consiste. No Ocidente, é mais
conhecido como “haraquiri”. Trata-se de ritual, surgido no Japão no século XII,
que perdurou até 1868, quando passou a ser coibido pelas autoridades. Era
reservado à classe guerreira, principalmente samurai, da qual Mishima descendia
da parte da avó paterna, Natsu.
O processo completo, que culmina com a “estripação”, ou seja, com a
exposição das vísceras do suicida, tem uma série de meticulosos passos. Requer,
acima de tudo, que haja muitas testemunhas, para comprovar o suposto heroísmo e
extrema abnegação do guerreiro que se submete ao ritual. A enciclopédia
Wikipédia assim descreve a cerimôna: “O método apropriado de execução consistia
num corte (kiru) horizontal na zona do abdômen, abaixo do umbigo (hara),
efetuado com um tantō, wakizashi ou simples punhal. Ele partia do lado esquerdo
e cortava o ventre até ao lado direito, deixando, assim as vísceras expostas,
como forma de mostrar pureza de caráter. Finalmente, se as forças assim o
permitissem, era realizado outro corte, puxando a lâmina para cima, prolongando
a primeira incisão ou iniciando uma nova ao meio dessa. Terminado o corte, o
kaishakunin realizava sua principal função no ritual: a decapitação”.
Processo bárbaro, não é mesmo? Bárbaro e extremamente doloroso, por ser
bastante lento, prolongando a agonia do suicida até o desfecho do ritual, ou
seja, de quando era, afinal, decapitado. Wikipédia explica mais: “...O seppuku
foi utilizado como método de demonstrar a coragem, o auto-controle e a forte
determinação, característicos de um samurai. Como parte do código de honra do
bushido, o ritual era prática comum entre os samurais, que consideravam sua
vida como uma entrega à honra de morrer gloriosamente, rejeitando cair nas mãos
dos seus inimigos”.
Tinha, no entanto, também, outra conotação, nada honrosa. Conforme a
Wikipédia, era, às vezes, uma “forma de pena de morte frente à desonra por um
crime, delito ou por outro motivo que ignominiasse o suicida”. Não era,
todavia, o caso de Yukio Mishima. Pelo menos ele achava que se tratava do
supremo ato de reverência e de veneração sem limites ao imperador, no qual
vislumbrava a personifiocação de um deus e ao qual pretendia que fossem
devolvidas prerrogativas que ele perdera quando forçado a assinar o ato de
rendição, ao cabo da Segunda Guerra Mundial, que se deu em torno de uma semana
após o lançamento da segunda bomba atômica, por parte dos Estados Unidos, sobre
a cidade japonesa de Nagasaki. A primeira havia pulverizado Hiroshima dias
antes!!!
Os motivos para o “seppuku” não eram, somente, os dois que mencionei (com o
imprescindível auxílio da Wikipédia). A enciclopédia eletrônica acrescenta,
ainda, a propósito: “Outras razões estavam por detrás destes corajosos atos,
como a violação da lei ou o chamado oibara, no qual o ronin ("homem
onda"), após perder o seu daimyo ("senhor feudal") seria
compelido à prática do seppuku, excetuando-se casos em que o seu senhor por
escrito impedia tal costume”.
Yukio Mishima cumpriu à risca o centenário ritual, da exata maneira como
havia meticulosamente planejado. Liderando quatro membros do Tatenokai, grupo
paramilitar que havia fundado, invadiu um quartel das Forças de Auto-Defesa em
Tóquio e rendeu seu comandante. A seguir, fez um discurso patriótico, que se
destinava a persuadir os soldados (mais de mil) a restituírem os poderes
absolutos ao imperador, perdidos no pós-guerra. Diante da indiferença dos
militares, resolveu fazer o que havia se proposto e que tinha planejado há, no
mínimo, um ano. Ou seja, cometer o “sepuku”. Teve, no ato, a assistência de
Hiroyasu Koga, que o decapitou após a dolorosa estripação. Aliás, esse foi o
único ponto que diferiu do que planejou. Isso porque seu amante, Masakatsu
Morita, fracassou no momento final. Não teve coragem para decapitar o escritor.
Segundos antes da decapitação, Yukio Mishima gritou, para que todos os
presentes o ouvissem: “Vida longa ao Imperador!!!!”. A seguir... sua cabeça
rolou...
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