Dos Anos Loucos à
Grande Depressão
Pedro
J. Bondaczuk
O conteúdo de qualquer
livro, não importa de que gênero (e nem se ele é de ficção ou não), reflete,
necessariamente, de uma forma ou de
outra, a realidade social do tempo em que foi escrito, captada, mesmo que
inconscientemente, pelo escritor. Seu autor tanto pode justificar e aprovar,
mesmo que com algumas restrições, o comportamento vigente (o que é bastante
raro), quanto reprovar, contestar e apresentar alternativas a ele, não raro
diametralmente opostas. Ninguém consegue escrever, com um mínimo de coerência e
credibilidade, sobre o que ignora, desconhece ou não tenha sequer rudimentar
noção, mesmo que parcial e elementar. O escritor, queiram ou não, é testemunha
de seu tempo, mesmo que escreva sobre o passado ou que faça projeções sobre o
futuro.
O livro “Admirável
mundo novo”, de Aldous Huxley, embora se trate de “fábula futurística”, reflete
a realidade política, social, artística e, sobretudo, comportamental do mundo
no tempo em que foi escrito. Ou seja, dos anos que antecederam 1931, quando foi
redigido. O objetivo, porém, foi o de “corrigi-la”. Nada melhor, para isso, do
que apresentar os riscos do excesso dessa correção. E foi o que Huxley fez.
Para um entendimento pleno do que motivou o escritor a seguir a linha que
seguiu, é preciso contextualizar o romance. Lembrar como era o mundo na época
em que foi escrito.
E qual era a opinião
geral, a majoritária, sobretudo dos conservadores e de boa parte dos
intelectuais, sobre o comportamento das pessoas no período posterior ao fim da
Primeira Guerra Mundial? Era a de que havia desordem generalizada por toda a
parte. Era a de que as pessoas haviam perdido os “freios morais” e se
comportavam na base do “libera geral” em que tudo era permitido para
satisfazer, a qualquer preço, os sentidos. Tanto que a década de 20 do século
passado passou para a História, não sem ostensivo exagero, com o rótulo de “Anos
loucos”.
Huxley concebeu uma
sociedade rigorosamente contrária à do tempo em que escreveu o livro. Ou seja,
para “corrigir” a excessiva desordem contrapôs a “ordem em excesso”, levada às
últimas conseqüências. Só que para ela ser imposta, foi sacrificada a liberdade
individual, o livre arbítrio, a prerrogativa de cada qual decidir o que fazer
da própria vida, sem interferências e nem oposição de quem quer que fosse.
Maria Clara Correa Tenório caracteriza com exatidão o teor dessa obra polêmica,
mas sumamente original.
No resumo que introduz
seu meticuloso ensaio “O Admirável Mundo Novo: fábula científica ou pesadelo
virtual?”, escreve: “O cientificamente
possível é eticamente viável? O Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley
em 1931 é uma ‘fábula’ futurista relatando uma sociedade completamente
organizada, sob um sistema científico de castas. Não haveria vontade livre,
abolida pelo condicionamento; a servidão seria aceitável devido a doses
regulares de felicidade química e ortodoxias e ideologias seriam ministradas em
cursos durante o sono. Olhando o presente, podemos imaginar um futuro
semelhante em termos de avanços tecnológicos. Será ele de excessiva falta de
ordem, da ordem em excesso preconizada por Huxley ou já vivenciamos o pesadelo virtual de
Matrix, a fábula cinematográfica atual?”.
E como eram,
exatamente, aqueles anos que precederam a redação do livro de Huxley e que
causavam tanto horror aos conservadores? Bem, para quem deseje conhecê-los
melhor, sugiro que acessem o blog “Anos loucos” (http://anosloucos.blogspot.com.br),
com textos postados por Cris Valmont. Em determinado trecho da descrição dessa
época, é escrito: “No pós-guerra, o período conhecido como Années Folles (Anos
Loucos), a alta-costura voltou-se para uma nova clientela: atrizes, atores,
escritores e outros artistas, além de americanos que enriqueceram com a guerra,
e uns poucos nobres que subsistiram. Esse novo público frequentava boates da
moda, onde o jazz fazia sucesso. Montparnasse tornou-se o ‘bairro da moda’ em
Paris. Segundo Hemingway, Paris era, para os artistas, uma ‘permanente festa’.
Conforme Cláudia Garcia: ‘A era do jazz foi uma década de prosperidade e
liberdade, animada pelo som das jazz-bands e pelo charme das melindrosas –
mulheres modernas da época, que frequentavam os salões e traduziam em seu
comportamento e no modo de vestir o espírito dos novos tempos’.
Era a época da
liberação feminina, ou pelo menos seu início, após milênios de opressão. Era o
tempo das chamadas “sufraguetes”, que saíam às ruas das grandes cidades para
reivindicar o que hoje é corriqueiro (e em muitos casos, algo até chato e
enfadonho), que era o direito das mulheres de votar. Era o período de brilho de
determinadas feministas, como a escritora Virgínia Woolf, cujas atitudes
polêmicas eram imitadas por milhares e milhares de mocinhas como manifestações
de “modernidade”, para desespero, claro, dos conservadores, que as
consideravam, no mínimo, “imorais”. Frise-se que a mais feroz oposição a esse
comportamento liberal vinha das próprias mulheres, das que se consideravam “de
família”, ou seja, legítimas guardiãs “da moral e dos bons costumes”.
Em outro trecho, o
texto que citei, do blog “Anos loucos”, destaca: “As mulheres, cada vez mais independentes
e com poder de voto, decidiram abandonar de vez as antigas regras, subindo as
barras das saias e usando modelos de vestidos (bem) mais abertos e soltos. A
cintura desceu em modelagens de forma reta. Os cabelos ficaram curtinhos. Os
chapéus, menores. A maquiagem e os cigarros foram permitidos. Os ídolos do
cinema representavam todos esses ideais de beleza e comportamento”. Para a
imensa maioria, tudo isso representava liberdade “além da conta”, se não
libertinagem e anarquia, no sentido de absoluta desordem.
E o texto do blog diz
mais: “A grande revolução da década ocorre em 1925, quando os trajes femininos
encurtaram-se, indo até pouco abaixo dos joelhos. A cintura do vestido ou o cós
da saia ficava logo acima dos quadris, onde o corpo da mulher ainda é largo,
escondendo a cintura verdadeira, e o busto não era salientado, pelo contrário,
era escondido. Uma tendência andrógena, masculinizada”. Muitos consideravam
isso, óbvio, um “horror”! Outros tantos, não só aprovavam esse comportamento
rebelde, como o defendiam tenazmente, com paixão, como sendo manifestações de
avanço e de “modernidade”.
Tudo isso, se não
terminou de vez, pelo menos arrefeceu, justamente no último ano da década, ou
seja, em 29 de outubro 1929, com o “crash”, a quebra da Bolsa de Valores de
Nova York, que em questão de horas, pulverizou fortunas e lançou milhões de
pessoas na ruína financeira, afetando, profundamente, a até então sólida e
aparentemente invulnerável economia dos Estados Unidos, o que se refletiu no
mundo todo. Esse evento foi o estopim que deflagrou um período dos mais
sombrios e perversos, conhecido como Grande Depressão, resultando em falências
em massa, desemprego como até então jamais havia sido visto e, óbvio, muito
desespero, que levou dezenas e dezenas de pessoas ao suicídio ao redor do
Planeta.
Tudo isso, certamente,
esteve na mente de Aldous Huxley, ao compor sua sociedade de um futuro não
determinado, caracterizada por “excesso de ordem”, em que a produtividade e o
lucro eram absolutamente prioritários, com a supressão total da liberdade
individual, ao ponto do amor ser sufocado e banido e das pessoas serem
concebidas de forma “planejada”, como robôs, em autênticas “linhas de
montagem”, todas “bebês de proveta”, em que a reprodução natural, por vias de relações
sexuais, passou a\ser considerada supremo delito. Voltarei, certamente, ao
assunto.
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