Friday, February 06, 2015

Dos Anos Loucos à Grande Depressão

Pedro J. Bondaczuk

O conteúdo de qualquer livro, não importa de que gênero (e nem se ele é de ficção ou não), reflete, necessariamente,  de uma forma ou de outra, a realidade social do tempo em que foi escrito, captada, mesmo que inconscientemente, pelo escritor. Seu autor tanto pode justificar e aprovar, mesmo que com algumas restrições, o comportamento vigente (o que é bastante raro), quanto reprovar, contestar e apresentar alternativas a ele, não raro diametralmente opostas. Ninguém consegue escrever, com um mínimo de coerência e credibilidade, sobre o que ignora, desconhece ou não tenha sequer rudimentar noção, mesmo que parcial e elementar. O escritor, queiram ou não, é testemunha de seu tempo, mesmo que escreva sobre o passado ou que faça projeções sobre o futuro.

O livro “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, embora se trate de “fábula futurística”, reflete a realidade política, social, artística e, sobretudo, comportamental do mundo no tempo em que foi escrito. Ou seja, dos anos que antecederam 1931, quando foi redigido. O objetivo, porém, foi o de “corrigi-la”. Nada melhor, para isso, do que apresentar os riscos do excesso dessa correção. E foi o que Huxley fez. Para um entendimento pleno do que motivou o escritor a seguir a linha que seguiu, é preciso contextualizar o romance. Lembrar como era o mundo na época em que foi escrito.

E qual era a opinião geral, a majoritária, sobretudo dos conservadores e de boa parte dos intelectuais, sobre o comportamento das pessoas no período posterior ao fim da Primeira Guerra Mundial? Era a de que havia desordem generalizada por toda a parte. Era a de que as pessoas haviam perdido os “freios morais” e se comportavam na base do “libera geral” em que tudo era permitido para satisfazer, a qualquer preço, os sentidos. Tanto que a década de 20 do século passado passou para a História, não sem ostensivo exagero, com o rótulo de “Anos loucos”.

Huxley concebeu uma sociedade rigorosamente contrária à do tempo em que escreveu o livro. Ou seja, para “corrigir” a excessiva desordem contrapôs a “ordem em excesso”, levada às últimas conseqüências. Só que para ela ser imposta, foi sacrificada a liberdade individual, o livre arbítrio, a prerrogativa de cada qual decidir o que fazer da própria vida, sem interferências e nem oposição de quem quer que fosse. Maria Clara Correa Tenório caracteriza com exatidão o teor dessa obra polêmica, mas sumamente original.

No resumo que introduz seu meticuloso ensaio “O Admirável Mundo Novo: fábula científica ou pesadelo virtual?”, escreve: “O  cientificamente possível é eticamente viável? O Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley em 1931 é uma ‘fábula’ futurista relatando uma sociedade completamente organizada, sob um sistema científico de castas. Não haveria vontade livre, abolida pelo condicionamento; a servidão seria aceitável devido a doses regulares de felicidade química e ortodoxias e ideologias seriam ministradas em cursos durante o sono. Olhando o presente, podemos imaginar um futuro semelhante em termos de avanços tecnológicos. Será ele de excessiva falta de ordem, da ordem em excesso preconizada por Huxley  ou já vivenciamos o pesadelo virtual de Matrix, a fábula cinematográfica atual?”.

E como eram, exatamente, aqueles anos que precederam a redação do livro de Huxley e que causavam tanto horror aos conservadores? Bem, para quem deseje conhecê-los melhor, sugiro que acessem o blog “Anos loucos” (http://anosloucos.blogspot.com.br), com textos postados por Cris Valmont. Em determinado trecho da descrição dessa época, é escrito: “No pós-guerra, o período conhecido como Années Folles (Anos Loucos), a alta-costura voltou-se para uma nova clientela: atrizes, atores, escritores e outros artistas, além de americanos que enriqueceram com a guerra, e uns poucos nobres que subsistiram. Esse novo público frequentava boates da moda, onde o jazz fazia sucesso. Montparnasse tornou-se o ‘bairro da moda’ em Paris. Segundo Hemingway, Paris era, para os artistas, uma ‘permanente festa’. Conforme Cláudia Garcia: ‘A era do jazz foi uma década de prosperidade e liberdade, animada pelo som das jazz-bands e pelo charme das melindrosas – mulheres modernas da época, que frequentavam os salões e traduziam em seu comportamento e no modo de vestir o espírito dos novos tempos’.

Era a época da liberação feminina, ou pelo menos seu início, após milênios de opressão. Era o tempo das chamadas “sufraguetes”, que saíam às ruas das grandes cidades para reivindicar o que hoje é corriqueiro (e em muitos casos, algo até chato e enfadonho), que era o direito das mulheres de votar. Era o período de brilho de determinadas feministas, como a escritora Virgínia Woolf, cujas atitudes polêmicas eram imitadas por milhares e milhares de mocinhas como manifestações de “modernidade”, para desespero, claro, dos conservadores, que as consideravam, no mínimo, “imorais”. Frise-se que a mais feroz oposição a esse comportamento liberal vinha das próprias mulheres, das que se consideravam “de família”, ou seja, legítimas guardiãs “da moral e dos bons costumes”.

Em outro trecho, o texto que citei, do blog “Anos loucos”, destaca: “As mulheres, cada vez mais independentes e com poder de voto, decidiram abandonar de vez as antigas regras, subindo as barras das saias e usando modelos de vestidos (bem) mais abertos e soltos. A cintura desceu em modelagens de forma reta. Os cabelos ficaram curtinhos. Os chapéus, menores. A maquiagem e os cigarros foram permitidos. Os ídolos do cinema representavam todos esses ideais de beleza e comportamento”. Para a imensa maioria, tudo isso representava liberdade “além da conta”, se não libertinagem e anarquia, no sentido de absoluta desordem.

E o texto do blog diz mais: “A grande revolução da década ocorre em 1925, quando os trajes femininos encurtaram-se, indo até pouco abaixo dos joelhos. A cintura do vestido ou o cós da saia ficava logo acima dos quadris, onde o corpo da mulher ainda é largo, escondendo a cintura verdadeira, e o busto não era salientado, pelo contrário, era escondido. Uma tendência andrógena, masculinizada”. Muitos consideravam isso, óbvio, um “horror”! Outros tantos, não só aprovavam esse comportamento rebelde, como o defendiam tenazmente, com paixão, como sendo manifestações de avanço e de “modernidade”.

Tudo isso, se não terminou de vez, pelo menos arrefeceu, justamente no último ano da década, ou seja, em 29 de outubro 1929, com o “crash”, a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, que em questão de horas, pulverizou fortunas e lançou milhões de pessoas na ruína financeira, afetando, profundamente, a até então sólida e aparentemente invulnerável economia dos Estados Unidos, o que se refletiu no mundo todo. Esse evento foi o estopim que deflagrou um período dos mais sombrios e perversos, conhecido como Grande Depressão, resultando em falências em massa, desemprego como até então jamais havia sido visto e, óbvio, muito desespero, que levou dezenas e dezenas de pessoas ao suicídio ao redor do Planeta.

Tudo isso, certamente, esteve na mente de Aldous Huxley, ao compor sua sociedade de um futuro não determinado, caracterizada por “excesso de ordem”, em que a produtividade e o lucro eram absolutamente prioritários, com a supressão total da liberdade individual, ao ponto do amor ser sufocado e banido e das pessoas serem concebidas de forma “planejada”, como robôs, em autênticas “linhas de montagem”, todas “bebês de proveta”, em que a reprodução natural, por vias de relações sexuais, passou a\ser considerada supremo delito. Voltarei, certamente, ao assunto.


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