As
utopias que não são a minha
Pedro J. Bondaczuk
As
utopias sucederam-se no correr dos séculos, desde Platão, com filósofos,
teólogos, ideólogos e escritores expressando qual seria, na sua concepção, a
sociedade ideal, sem injustiças e sem conflitos, que no seu entender a
humanidade deveria instituir, para que o homem merecesse, de fato, ser
classificado como “racional”. São,
todas, claro, projeções para um futuro indeterminado. Nenhum desses sonhos,
todavia – a maioria mirabolantes e alguns até surreais – se concretizou, mesmo
que parcialmente. Tenho em mente, também, a minha, fruto dos valores que
cultivo e nos quais acredito. Embora seja um sujeito otimista, estou convicto
que ela jamais deixará o plano da idealização para se tornar concreta. A
natureza humana não permite isso.
O
escritor Mário Donato tratou desse tema, inclusive com preciosos detalhes
históricos para sua contextualização, em um ensaio intitulado “Utopia e o sonho
azul da Colônia Cecília”. O referido estudo data de 1983 e foi publicado, em
abril daquele ano, no suplemento “Leitura”, do Diário Oficial do Estado de São
Paulo. Recomendo-o aos que tiverem acesso a ele, pela riqueza de informações
que contém. Em determinado trecho desse ensaio, Mário Donato escreve:
"Thomas Morus, cujo livro (Utopia), foi escrito em latim no ano de 1516,
constrói uma ilha em oposição à Inglaterra de Henrique VIII, o que lhe custou a
cabeça. A sua sociedade, uma amálgama das virtudes platônicas e paulinas,
eliminava a propriedade privada da terra e a exploração do povo pelos
`landlords'. Em contrapartida, não deixava lugar a quem, como ele, quisesse
erguer a voz para uma crítica, mesmo que construtiva".
Thomas
Morus tem, evidentemente, seu valor. Foi eminente humanista, íntimo de Erasmo
de Rotterdã, que o celebrou no seu "Moriae Encomium" ou "Elogio
da Loucura". Tanto que foi beatificado em 1886 e canonizado por Pio XI em
1935. A força de suas idéias foi de tal sorte que, embora santo da Igreja
Católica, tem uma estátua em pleno centro de Moscou e foi reverenciado pelos
soviéticos como herói do comunismo, enquanto a URSS existiu. Ainda o é até
hoje. Mas... sua utopia não é a minha.
Mário
Donato prossegue em sua meticulosa análise: "Logo após Thomas Morus, no
mesmo século, surge outro religioso sonhando a sua utopia, agora um calabrês,
Tommaso Campanella, dominicano, hostil ao aristotelismo escolástico. É ele
autor de ‘A Cidade do Sol’, em que defende a propriedade coletiva de todos os
bens produzidos pela comunidade. Nela, os funcionários têm o dever de persuadir
os insubmissos a aprovarem o seu próprio castigo, em conseqüência do que
piedosamente os matam". Evidentemente, esta não pode ser minha utopia.
Afinal, valorizo a vida mais do que a qualquer outro bem ou virtude.
Mário
Donato relaciona algumas outras utopias. Escreve: "Pela ordem cronológica,
o utopista seguinte é Etienne Cabet, dos fins do século XIX, autor de ‘Viagem a
Icária'. Nesta cidade havia um toque de recolher permanente, vexame que, na
interpretação mais do que ingênua do autor, era acolhido com grande júbilo pela
população!". Cabet, líder espiritual dos icários, tentou fundaar colônias
utópicas nos Estados Unidos, na época o país das liberdades e das
possibilidades ilimitadas. Seus adeptos e outros utopistas fundaram, entre 1830
e 1860, vários núcleos em território norte-americano, mas todos malograram.
Esta, portanto, como as anteriores, ainda não é minha utopia, que é muitíssimo
mais transcendental.
Por
volta de 1860, o utopismo parecia praticamente desacreditado. O poeta inglês
William Morris, em seu livro "News from Nowhere" ("Notícias de parte
alguma"), renova a tradição iniciada por Thomas Morus. Sua sociedade
ideal, todavia, nunca saiu do papel e jamais foi tentada na prática. Donato
acrescenta: "O mais recente de tais utopistas é o norte-americano Edward
Bellamy (1850-1898), cujo ‘Cem anos depois’ (título em português) se passa em
Boston no ano 2000. Felizmente, os bostonianos do terceiro milênio não contam
criminosos entre si: os que se insubordinam são tratados como loucos",
destaca. Embora tenha alguns ingredientes interessantes, esta, igualmente, não
é a utopia que proponho.
Mário
Donato observa: "Todos estes utopistas tinham a melhor das intenções.
Comoviam-se com a pobreza, a doença e a desesperança, e buscavam dar-lhes
remédio através de uma nova organização social, cuja base era, sempre, a
propriedade coletiva de todos os bens. Thomas Morus ia ainda mais longe: depois
de certo tempo, embora todas as casas fossem idênticas, as famílias deveriam
mudar-se, a fim de eliminar delas sinais de singularidade de cada grupo
familiar, como um retrato na parede, um enfeite, um bibelô. Enfim, era proibido
tudo quanto pertencesse ao indivíduo e escapasse ao Estado anônimo e
todo-poderoso".
Estas
utopias colocavam o ser humano, concreto, sob férrea subordinação de uma
entidade abstrata, não mais do que mero conceito organizacional. Subjugavam as
pessoas. Ditavam onde elas deveriam morar, com quem se casar, como educar os
filhos, o que deveriam pensar etc. Enfim, desumanizavam o homem. Tratavam-no
como robô, teleguiado por uma inteligência que presumivelmente lhe seria
superior. Nenhuma delas é, evidentemente, minha utopia: a da racionalidade
irrestrita, a do autodomínio e a da espontânea solidariedade. Reitero que tenho
plena consciência de sua inviabilidade, a menos que o homem mude radicalmente sua
forma de pensar e de agir.
Donato
observa na sequência: "Em todas as utopias, o Estado, de uma forma ou
outra, está sempre presente e o trabalho é uma obrigação a que ninguém pode
furtar-se. Sobretudo no caso dos chamados ‘socialistas utópicos', como Jean
Greve, Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Godwin, Owen, Morris, todos do século
XIX, que invocavam outras soluções para a produção de bens, como o
cooperativismo ou o contrato livremente estabelecido entre as partes. Nunca
nenhum deles atreveu-se a criar uma utopia ‘anarquista', ou seja, um paraíso
edênico, sem governo nem trabalho, onde os seus felizes cidadãos pudessem
colher nas árvores plantadas por Deus, além dos frutos naturais, algo como
conjuntos completos e grátis de ‘prêt-a-porter', liquidificadores, óculos
rayban e radinhos de pilha. Nem James Hilton, autor de ‘Horizonte Perdido', que
vimos no cinema, e cuja terra de sonho, Shangri-lá, abrigava a chamada eterna
juventude, disponível ao menos para os eleitos. Como também ‘Ela', de Ridder
Hagard, em que Hilton disse ter se inspirado. Em todas as utopias há governo e
trabalho. Nenhuma terra é a Coconha dos italianos – aquele pau-de-sebo em cuja
ponta os mais espertos colhem brincando os prêmios da sua ociosidade
legal".
Nenhuma
das utopias mencionadas, portanto, é a minha, embora algumas tenham muitos
ingredientes que julgo possíveis, desejáveis e factíveis. E qual é, pois, essa
sociedade ideal, na qual eu gostaria de viver e que deixaria, com orgulho, como
herança à minha descendência? É tão complexa (tendo em vista a natureza humana)
que precisará de vários textos, mais ou menos como este, se não muito mais
extensos, para ser minimamente resumida.
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