Tuesday, February 24, 2015

As utopias que não são a minha

Pedro J. Bondaczuk

As utopias sucederam-se no correr dos séculos, desde Platão, com filósofos, teólogos, ideólogos e escritores expressando qual seria, na sua concepção, a sociedade ideal, sem injustiças e sem conflitos, que no seu entender a humanidade deveria instituir, para que o homem merecesse, de fato, ser classificado como “racional”.  São, todas, claro, projeções para um futuro indeterminado. Nenhum desses sonhos, todavia – a maioria mirabolantes e alguns até surreais – se concretizou, mesmo que parcialmente. Tenho em mente, também, a minha, fruto dos valores que cultivo e nos quais acredito. Embora seja um sujeito otimista, estou convicto que ela jamais deixará o plano da idealização para se tornar concreta. A natureza humana não permite isso.

O escritor Mário Donato tratou desse tema, inclusive com preciosos detalhes históricos para sua contextualização, em um ensaio intitulado “Utopia e o sonho azul da Colônia Cecília”. O referido estudo data de 1983 e foi publicado, em abril daquele ano, no suplemento “Leitura”, do Diário Oficial do Estado de São Paulo. Recomendo-o aos que tiverem acesso a ele, pela riqueza de informações que contém. Em determinado trecho desse ensaio, Mário Donato escreve: "Thomas Morus, cujo livro (Utopia), foi escrito em latim no ano de 1516, constrói uma ilha em oposição à Inglaterra de Henrique VIII, o que lhe custou a cabeça. A sua sociedade, uma amálgama das virtudes platônicas e paulinas, eliminava a propriedade privada da terra e a exploração do povo pelos `landlords'. Em contrapartida, não deixava lugar a quem, como ele, quisesse erguer a voz para uma crítica, mesmo que construtiva".

Thomas Morus tem, evidentemente, seu valor. Foi eminente humanista, íntimo de Erasmo de Rotterdã, que o celebrou no seu "Moriae Encomium" ou "Elogio da Loucura". Tanto que foi beatificado em 1886 e canonizado por Pio XI em 1935. A força de suas idéias foi de tal sorte que, embora santo da Igreja Católica, tem uma estátua em pleno centro de Moscou e foi reverenciado pelos soviéticos como herói do comunismo, enquanto a URSS existiu. Ainda o é até hoje. Mas... sua utopia não é a minha.

Mário Donato prossegue em sua meticulosa análise: "Logo após Thomas Morus, no mesmo século, surge outro religioso sonhando a sua utopia, agora um calabrês, Tommaso Campanella, dominicano, hostil ao aristotelismo escolástico. É ele autor de ‘A Cidade do Sol’, em que defende a propriedade coletiva de todos os bens produzidos pela comunidade. Nela, os funcionários têm o dever de persuadir os insubmissos a aprovarem o seu próprio castigo, em conseqüência do que piedosamente os matam". Evidentemente, esta não pode ser minha utopia. Afinal, valorizo a vida mais do que a qualquer outro bem ou virtude.

Mário Donato relaciona algumas outras utopias. Escreve: "Pela ordem cronológica, o utopista seguinte é Etienne Cabet, dos fins do século XIX, autor de ‘Viagem a Icária'. Nesta cidade havia um toque de recolher permanente, vexame que, na interpretação mais do que ingênua do autor, era acolhido com grande júbilo pela população!". Cabet, líder espiritual dos icários, tentou fundaar colônias utópicas nos Estados Unidos, na época o país das liberdades e das possibilidades ilimitadas. Seus adeptos e outros utopistas fundaram, entre 1830 e 1860, vários núcleos em território norte-americano, mas todos malograram. Esta, portanto, como as anteriores, ainda não é minha utopia, que é muitíssimo mais transcendental.

Por volta de 1860, o utopismo parecia praticamente desacreditado. O poeta inglês William Morris, em seu livro "News from Nowhere" ("Notícias de parte alguma"), renova a tradição iniciada por Thomas Morus. Sua sociedade ideal, todavia, nunca saiu do papel e jamais foi tentada na prática. Donato acrescenta: "O mais recente de tais utopistas é o norte-americano Edward Bellamy (1850-1898), cujo ‘Cem anos depois’ (título em português) se passa em Boston no ano 2000. Felizmente, os bostonianos do terceiro milênio não contam criminosos entre si: os que se insubordinam são tratados como loucos", destaca. Embora tenha alguns ingredientes interessantes, esta, igualmente, não é a utopia que proponho.

Mário Donato observa: "Todos estes utopistas tinham a melhor das intenções. Comoviam-se com a pobreza, a doença e a desesperança, e buscavam dar-lhes remédio através de uma nova organização social, cuja base era, sempre, a propriedade coletiva de todos os bens. Thomas Morus ia ainda mais longe: depois de certo tempo, embora todas as casas fossem idênticas, as famílias deveriam mudar-se, a fim de eliminar delas sinais de singularidade de cada grupo familiar, como um retrato na parede, um enfeite, um bibelô. Enfim, era proibido tudo quanto pertencesse ao indivíduo e escapasse ao Estado anônimo e todo-poderoso".

Estas utopias colocavam o ser humano, concreto, sob férrea subordinação de uma entidade abstrata, não mais do que mero conceito organizacional. Subjugavam as pessoas. Ditavam onde elas deveriam morar, com quem se casar, como educar os filhos, o que deveriam pensar etc. Enfim, desumanizavam o homem. Tratavam-no como robô, teleguiado por uma inteligência que presumivelmente lhe seria superior. Nenhuma delas é, evidentemente, minha utopia: a da racionalidade irrestrita, a do autodomínio e a da espontânea solidariedade. Reitero que tenho plena consciência de sua inviabilidade, a menos que o homem mude radicalmente sua forma de pensar e de agir.

Donato observa na sequência: "Em todas as utopias, o Estado, de uma forma ou outra, está sempre presente e o trabalho é uma obrigação a que ninguém pode furtar-se. Sobretudo no caso dos chamados ‘socialistas utópicos', como Jean Greve, Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Godwin, Owen, Morris, todos do século XIX, que invocavam outras soluções para a produção de bens, como o cooperativismo ou o contrato livremente estabelecido entre as partes. Nunca nenhum deles atreveu-se a criar uma utopia ‘anarquista', ou seja, um paraíso edênico, sem governo nem trabalho, onde os seus felizes cidadãos pudessem colher nas árvores plantadas por Deus, além dos frutos naturais, algo como conjuntos completos e grátis de ‘prêt-a-porter', liquidificadores, óculos rayban e radinhos de pilha. Nem James Hilton, autor de ‘Horizonte Perdido', que vimos no cinema, e cuja terra de sonho, Shangri-lá, abrigava a chamada eterna juventude, disponível ao menos para os eleitos. Como também ‘Ela', de Ridder Hagard, em que Hilton disse ter se inspirado. Em todas as utopias há governo e trabalho. Nenhuma terra é a Coconha dos italianos – aquele pau-de-sebo em cuja ponta os mais espertos colhem brincando os prêmios da sua ociosidade legal".

Nenhuma das utopias mencionadas, portanto, é a minha, embora algumas tenham muitos ingredientes que julgo possíveis, desejáveis e factíveis. E qual é, pois, essa sociedade ideal, na qual eu gostaria de viver e que deixaria, com orgulho, como herança à minha descendência? É tão complexa (tendo em vista a natureza humana) que precisará de vários textos, mais ou menos como este, se não muito mais extensos, para ser minimamente resumida.


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