Redemocratização por etapas
Pedro J.
Bondaczuk
O Haiti, às duras penas, avança em seu processo rumo à
normalidade democrática. O primeiro e decisivo passo foi dado em fevereiro
passado, quando a população, cansada de ser espezinhada, aterrorizada, humilhada
e explorada, rebelou-se, em todo o país, e criou uma situação, de tal forma
crítica, que determinou a fuga de Jean-Claude Duvalier, pondo fim ao terrível
reinado, de um quarto de século de duração, de Papa Doc e de seu herdeiro, o
Baby Doc.
Houve, a princípio, uma certa
excitação nos meios políticos desse país insular, no sentido de se exigir
eleições presidenciais imediatas após a saída do presidente, rumo a um
confortável e nababesco exílio na Riviera Francesa. Opositores que viviam
exilados encararam com desconfiança a mudança de comando, com a ascensão de uma
junta civil-militar para gerir, provisoriamente, a vida nacional. Alguns
chegaram a argumentar, não sem uma forte dose de precipitação, que se estava
substituindo uma ditadura por outra.
O tenente-general Henry Namphy, a
quem coube a tarefa de governo, num pronunciamento público que fez, em março
passado, em Port-au-Prince, definiu, com clareza, o calendário do processo de
normalização democrática do Haiti. Prometeu, primeiro, uma eleição para a
escolha de uma Assembléia Nacional Constituinte.
A Constituição que existia, de
tão viciosa e dirigida que era, foi, simplesmente, abolida e o país passou a
ser regido por uma carta provisória. Era evidente que, sem uma lei maior para
reger o Estado, uma convocação às urnas, para eleger um presidente, seria uma
atitude prematura e tenderia, somente, a criar problemas mais sérios no futuro.
Para um país que teve todas as
instituições virtualmente deturpadas e bombardeadas por 25 anos de arbítrio
(foi a mais terrível e hedionda ditadura que se tem notícia nas três Américas,
onde o caudilhismo, infelizmente, ainda é uma praxe), era indispensável que se
fizesse uma reorganização por etapas do Estado.
Hoje, finalmente, os haitianos
poderão sentir o prazer de manifestar sua cidadania nas urnas. Pelas notícias
procedentes da ilha, acredita-se numa votação ordeira e livre, isenta das
mazelas que marcaram este tipo de consulta popular em um passado ainda recente
e que transformaram a palavra “eleição” em sinônimo de farsa e de corrupção.
Dado este primeiro passo, e
redigida a nova Constituição, o Haiti terá todas as condições de, enfim, eleger
um presidente civil. O tenente-general Henry Namphy comprometeu-se em realizar
esse processo em novembro do próximo ano. Face ao cumprimento da primeira parte
do compromisso que assumiu com a população, não há porque duvidar que a segunda
etapa também serás desenvolvida com a mesma lisura.
Aliás, este oficial jamais
escondeu de ninguém o fato de que não deseja continuar no poder. Assegurou que
assumiu a função mais como missão militar, que considera a mais relevante da
sua carreira. Os que privam da sua intimidade garantem que o tenente-general
estaria contando, nos dedos, os dias que faltam para chegar fevereiro de 1988,
quando reitera que pretende dar posse a um presidente eleito. E, ademais, se
fosse sua intenção manter-se encastelado na presidência, não teria o menor
sentido convocar as eleições de hoje.
Não haveria a necessidade de
entregar ao povo o Poder Constituinte. Bastaria que agisse como todos os
caudilhos. Ou seja, que ordenasse a alguns juristas afeitos a orbitar à sombra
do poder para que rabiscassem algumas das tantas aberrações jurídicas,
geralmente apelidadas de “revolucionárias”, que se redigem por aí, que faria as
vezes de uma Constituição. E que prosseguisse comandando o Haiti a ferro e
fogo, como seus dois antecessores o fizeram, se valendo do terror semeado pela
implacável polícia secreta da ditadura, a “Tonton Macoute”.
Namphy, ao colocar em andamento o
processo de normalização democrática, além de bom-senso, demonstra ser um
patriota. E é disso que o Haiti tanto precisa, após ter sido, por tanto tempo,
mero feudo pessoal de uma única e tirânica família. Que assim seja!!!
(Artigo publicado na página 17, Internacional, do Correio Popular, em 19
de outubro de 1986).
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