Saturday, August 24, 2013

Pessoas não são peças de xadrez

Pedro J. Bondaczuk

A augusta Corte Internacional de Justiça de Haia, onde o tribuno e jurista brasileiro Ruy Barbosa, o nosso "Águia", se destacou um dia, hoje o ramo jurídico da Organização das Nações Unidas, deu um veredito ontem, reconhecendo, por vias indiretas, a procedência da acusação da Nicarágua de que os Estados Unidos são um Estado terrorista. Ou seja, que financia grupo guerrilheiro com o objetivo específico e declarado de derrubar um governo legalmente estabelecido, que conta com o reconhecimento internacional (inclusive dos próprios norte-americanos que, a despeito de sua hostilidade, até armada, com esse país, ainda mantêm relações diplomáticas plenas com Manágua), contrariando tudo o quanto apregoam pelo mundo, especialmente quando desejam atingir líbios, sírios e iranianos.

Moralmente, o respaldo que Washington dá aos anti-sandinistas, que Reagan não se cansa de chamar de "combatentes da liberdade" (mas que durante a ditadura de Somoza não moveram um só dedo para libertar o seu povo, bajulando, pelo contrário, aquele todo-poderoso caudilho centro-americano) é tão reprovável quanto a assistência dada por Khadafy a entidades terroristas. Ou tanto quanto a ajuda que Hafez Assad eventualmente possa dar aos palestinos. É, até mesmo, um pouco pior.

No caso da Líbia e da Síria há, pelo menos, uma identidade racial. São povos árabes que, embora por meios ilegítimos, se solidarizam com seus irmãos, numa luta insensata, inglória, desnecessária, mas até certo ponto compreensível. E no caso norte-americano, qual a motivação? Causa estratégica? Temor de uma "infecção" marxista na América Central, seu autêntico e histórico quintal? Tolice! Como também o é a afirmação do presidente norte-americano de que apenas pressionados, os sandinistas se verão forçados a negociar com  a pseudo-oposição. Ou seja, com os mesmos protegidos do regime anterior, de triste memória para o seu povo, que eles tanto lutaram para derrubar.

Mas admitamos que esse seja o único caminho para forçar uma negociação e que os esforços do Grupo de Contadora não viessem a redundar em nenhum benefício. É lícito expor vidas alheias num joguinho estratégico, como se elas não passassem de meras peças de um tabuleiro de xadrez, que podem receber "xeque-mate" para reviverem na partida seguinte?

Para os nicaragüenses mortos nesta luta fratricida não existe outro jogo! Certamente eles não irão ressuscitar. Perderão suas existências, tornadas penosas exatamente por seus algozes, na época em que os mesmos respaldavam a ditadura somozista.

A infeliz decisão da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, além de ilegal (foi a Corte de Haia que decidiu isso), foi desastrada num outro sentido. Veio num momento em que o Grupo de Contadora, após uma louvável maratona diplomática, estava muito próximo de obter uma solução negociada para esse conflito.

Bastaria apenas que os Estados Unidos garantissem que suspenderiam a ajuda aos rebeldes (que eles próprios criaram com nicaragüenses refugiados em seu território, que haviam fugido de seu país para não serem punidos por seus delitos durante o regime anterior). Com essa simples atitude de bom senso e até de humanitarismo, os sandinistas teriam firmado a Ata de Paz e Cooperação para a América Central (tão penosamente elaborada pelo México, Panamá, Colômbia e Venezuela, com o apoio de Brasil, Argentina, Uruguai e Peru). Mas, mais uma vez, os norte-americanos deram uma demonstração daquilo que pensam de nós. Talvez parte desse desapreço ou desconsideração seja até merecida. Afinal, quem manda a gente aceitar tudo o que eles nos impõem ciclicamente?!

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 28 de junho de 1986)


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