Eufemismos e estereótipos
Pedro J. Bondaczuk
Os
homens que ocupam o poder, em qualquer de suas instâncias, seja em que parte do
mundo (ou em que época) for, via de regra, salvo raras exceções, lançam mão, em
seus contatos com as pessoas sobre as quais exercem domínio – caracterizadas
genericamente como "povo" –, de eufemismos e de estereótipos para
"explicar", ou no mais das vezes "justificar", ações (ou
omissões). Acabam, por conseqüência, não explicando e nem justificando nada.
Certamente não é essa sua verdadeira intenção.
Alguns
jargões utilizados já se tornaram até motivos de anedota entre os politicamente
esclarecidos (minoria em termos mundiais e mais ainda no Brasil), de tão
cínicos que são. Tal manifestação de esperteza seria, de fato, risível, não
fosse lamentável, por se tratar de uma forma de burla, de fuga à
responsabilidade da prestação de contas àqueles que esses poderosos
(teoricamente) representam.
Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira define assim o termo "eufemismo", em seu
popular dicionário da língua portuguesa: "sm. Ato de suavizar a expressão
duma idéia substituindo a palavra própria por outra mais polida". Já
estereótipo é uma expressão emprestada das artes gráficas e usada como metáfora
para clichê, para chavão, para a maneira geralmente distorcida e inalterável de
caracterizar pessoas, grupos, objetos, conceitos etc.
Estereotipia,
de acordo com o dicionarista, é o "processo pelo qual se duplica uma
composição tipográfica, transformando-a em fôrma compacta, mediante moldagem de
uma matriz sobre a qual se vaza metal-tipo". O jornalista Jânio de Freitas, em artigo
publicado na "Folha de S. Paulo" no dia 23 de novembro de 1998,
intitulado "País Submergente", alinha alguns eufemismos muito comuns,
utilizados, sem nenhuma parcimônia, especialmente por economistas e sociólogos.
O
articulista cita, por exemplo, que a caracterização (até pouco tempo atrás
muito em voga) para país pobre, atrasado e/ou mal administrado, ou seja,
"subdesenvolvido", foi substituída
pelo termo "emergente". Mas o Brasil não "emergiu"
do buraco onde está metido há quase cinco séculos. Pode estar a caminho de
fazê-lo (e na minha opinião, está), mas ainda permanece “submerso”, se
atentarmos para o seu potencial. Destaque-se que está nessa situação não por
ausência de recursos naturais e de material humano, mas por falta de verdadeira
consciência social, que não privilegie pessoas ou grupos, mas proporcione
oportunidades relativamente iguais para todos.
O
conceito de cidadania no Brasil (se é que de fato existe) está muito longe do
real significado. Não passa de retórica, face à realidade cruel com a qual
convivemos da infância à velhice e que por isso já nos acostumamos. Se
"país emergente" é um eufemismo, o mito do "brasileiro
cordial" é estereótipo. Nenhum dos dois condiz com a realidade dos fatos.
Não, pelo menos, de toda ela.
O
sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, em discurso que proferiu em 20 de outubro de
1990 no Saint Anthony's College, em
Oxford, Inglaterra, na cerimônia de entrega do Prêmio Toynbee (texto inserido
em seu livro "Após 1989 – Moral, Revolução e Sociedade Civil"),
destacou: "...A cidadania visa a dar a pessoas que são diferentes em idade
e sexo, em suas crenças e na cor de sua pele, em seus interesses sociais e em
suas preferências políticas, os mesmos direitos básicos. Esses direitos incluem
o que veio a ser denominado de direitos humanos, como a integridade da pessoa e
a liberdade de expressão; eles incluem também os direitos civis de participação
na comunidade política, no mercado de trabalho, na sociedade, incluindo também
o direito de seguir as próprias preferências culturais".
Por
essa conceituação, se pode dizer, mesmo "forçando a barra", que a
maioria dos brasileiros exerce minimamente a cidadania? Claro que não! E as
esperanças de mudança estão se exaurindo. O "passaporte" para a
liberdade – a educação – ainda é muito precário no Brasil (uma parcela
considerável da população não tem acesso a ele) e requer ajustes. Verdade seja
dita que, nesse aspecto, houve ligeira evolução nos quatro últimos governos: o
do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os dois mandatos de Luís Inácio
Lula da Silva e a atual gestão de Dilma Roussef. Mas há ainda longo,
longuíssimo caminho, de se perder de vista, a percorrer.
A
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco)
classificou, há quinze anos, o ensino brasileiro como um dos mais deficientes
do mundo. E ele já foi pior, conforme frisei em várias oportunidades! Mas para
poder ser considerado pelo menos “regular”, terá que evoluir muito, mas muito
mesmo. Progredimos nesse campo, mas o progresso foi muito pequeno, diria
irrisório, diante das necessidades e do tempo que já foi perdido.
Mas
o subdesenvolvimento brasileiro, ao contrário da maioria dos outros povos da
África, Ásia e América Latina, não decorre da falta de riquezas naturais ou das
geradas com o trabalho da sua população. O País ostenta ora a quinta, ora a
sexta maior economia do mundo, o que, convenhamos, não é pouco. No papel, a
renda per capita anual (crescente) não é nada desprezível se, na realidade,
fosse corretamente distribuída. Qualquer pessoa minimamente bem informada sabe
que não é. Os números relativos à renda per capita do brasileiro são
mentirosos. Oitenta por cento dos cerca de 200 milhões de brasileiros – que ou
não têm nenhum rendimento, ou sobrevivem (ou vegetam) com entre meio e um
salário mínimo mensal –, só podem rir desses dados estatísticos, longe de
condizerem com sua verdadeira condição de quase indigência.
O
pecado do Brasil, portanto, reside (reitero) na "repartição do bolo",
prometida por sucessivos governos – quer ditatoriais, quer os livremente
eleitos pelo voto – mas jamais cumprida. Não, pelo menos, de forma sistemática
e contínua. Nesse aspecto, o da distribuição de renda, estatísticas precisas,
de entidades internacionais confiáveis, demonstram, de sobejo, que somos a
sociedade nacional mais injusta do Planeta (ou pelo menos entre elas). O fosso
que divide ricos de miseráveis, apesar de se estreitar, ainda é muito profundo.
O
Brasil, portanto, ainda não emergiu, a despeito dos progressos sociais que
obteve que apenas impediram que a situação se agravasse. Outro eufemismo muito
difundido é o de caracterizar o "retrocesso econômico" como sendo
"crescimento negativo", evidente paradoxo, gritante contradição até
mesmo semântica. "Favela" mudou de nome e é freqüentemente denominada
pela tecnoburocracia de plantão de "assentamento urbano de baixa
renda", como se a elegância da expressão apagasse, ou pelo menos
atenuasse, a miserabilidade dessa forma subumana de "morar" (ou de se
"esconder").
Em
política, "infidelidade" para com partidos, aliados e principalmente
com eleitores; "oportunismo" e "egoísmo" transformaram-se
em "fisiologismo". O miserável e excluído, vítima do
"apartheid" social que atinge a dois terços dos mais de sete bilhões
de habitantes do Planeta, é chamado de "carente" (e põe carência
nisso!). "Mão de obra ociosa" é o conjunto dos
"desempregados".
O
diplomata Josué de Castro, no livro "Geografia da Fome", advertiu que
"dois terços da humanidade não comem e um terço não dorme com medo da
revolta daqueles que não comem", que é fatal, mera questão de tempo e do
grau de desespero desses famintos. A todo o instante, nos discursos e
declarações de políticos, ou nos artigos e ensaios de economistas, cientistas
políticos e sociólogos, topamos com desnecessários e cínicos eufemismos e
estereótipos. São tantos que se torna redundante e, portanto, desnecessário,
relacionar e repetir sequer os mais comuns.
Um
deles, além do que diz respeito à suposta "cordialidade" do
brasileiro (desmentida pelos crescentes e assustadores índices de violência e
criminalidade), é o do "país do futuro" (infelizmente "deitado
eternamente em berço esplêndido"). Outro desses estereótipos é o da
"alegria" espontânea do povo. Outro, ainda, é a afirmação de que o
Brasil "fatalmente se tornará superpotência" um dia. Neste último
caso, até pode ser, já que dispõe de potencial para isso. Mas quando?
Para
acontecer, será necessário vencer desafios imensos, nos campos da educação
(principalmente), da saúde pública (em petição de miséria), da habitação (que
apresenta déficits escandalosos), do bem-estar social e da distribuição de
renda, entre outros. Não serão eufemismos e estereótipos que irão mudar a
situação do brasileiro. O saudoso presidente eleito (e nunca empossado)
Tancredo Neves destacou, em discurso proferido em 1985, que "enquanto
houver nesse país um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras,
toda a prosperidade será falsa". Quanto tempo ainda vai levar para que
haja consciência consensual sobre essa cristalina realidade? Um ano? Os quatro
da gestão da presidente Dilma Roussef? Cinco anos? Dez? Cinqüenta? Cem?
Nunca?... Todas essas possibilidades, em maior ou menor grau, permanecem em
aberto.
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