Charles
Dickens e a exploração do trabalho infantil
Pedro J. Bondaczuk
O
escritor inglês, Charles Dickens, um dos recordistas de vendas de livros de
todos os tempos, construiu sua magnífica obra literária denunciando, sobretudo,
as péssimas relações sociais do seu país, a Inglaterra, no século XIX.
Valeu-se, para tanto, de sua experiência pessoal, do drama da sua família, que
chegou a ser presa e aviltada por causa de dívidas. Vingou-se, todavia, fazendo
boa literatura. Daí sua fantástica aceitação até hoje.
Parte
considerável de seus personagens era de crianças e adolescentes, das classes
menos favorecidas, explorados de maneira consistente e persistente por alguns
espertalhões, que se valiam de sua ingenuidade, inexperiência e abandono para
lucrar com seu trabalho, sem que
tivessem maneiras de se defender. É difícil, se não impossível, ler os romances
desse autor sem se revoltar com o cinismo e o maucaratismo de adultos em todos
os tipos imagináveis de exploração de menores de idade.
Há,
até mesmo, quem considere que Dickens carregou nas tintas e descreveu tipos e
situações inverossímeis, tamanha a crueldade a que as crianças (muitas das
quais órfãs e criadas em orfanatos que apenas serviam de fachada aos
exploradores) eram submetidas em suas histórias. Entendo que quem pensa assim e
interpreta dessa maneira os enredos do eminente romancista seja, no mínimo, o
alienado dos alienados, incapaz de enxergar um palmo adiante do nariz. Há muita
gente assim, creiam-me, em quantidade muito maior do que ousamos desconfiar.
A
exploração do trabalho infantil não era pecado exclusivo da sociedade inglesa
da Era Vitoriana e está muito distante de ser coisa do passado no mundo.
Inclusive no Brasil, onde é considerado crime, mas que raramente é punido.
Desconheço casos de punição, embora conheça dezenas de episódios em que esse
delito foi e continua sendo cometido. Remexendo em papéis velhos de meus
arquivos jornalísticos, por exemplo, encontrei um estudo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), datado de 1990 (há 23 anos,
portanto), trazendo dados contundentes a respeito.
As
estatísticas, na frieza dos números que apresentam, é verdade, nem sempre levam
as pessoas a refletir em seu real significado. Poderiam e deveriam levar, e não
apenas à reflexão, mas a ações positivas para corrigir distorções. Mas...
infelizmente não levam. Por exemplo, no referido relato do IBGE fiquei sabendo
que na ocasião (reitero, há 23 anos) mais de 30% das crianças brasileiras, na
faixa dos dez aos 17 anos, trabalhavam. O bom senso diz que deveriam era estar
estudando.
Há,
certamente, os que dirão que isso se trata de algo positivo e até desejável, já
que o trabalho enobrece e quanto mais cedo se começar, maiores chances se terá
de fazer o que seja útil, construtivo e permanente. Essa posição fica ainda
mais sólida quando constatamos no noticiário cotidiano vários casos de crianças
e adolescentes cometendo toda a sorte de delitos, como roubos, furtos, tráfico
de drogas e principalmente assassinatos (há casos de menores, na faixa dos doze
a catorze anos, se não menos, com no mínimo meia dúzia de homicídios em seus
“currículos” da marginalia). Mas a coisa
não é bem assim. Um erro nunca justifica outro.
Como
já dizia Eclesiastes, "há tempo certo para tudo". É a miséria que
está ditando o futuro desses menores (como era a dos personagens de Dickens),
fadados a exercer tarefas secundárias, mal remuneradas e que num prazo não
muito distante, serão substituídas, inclusive, por robôs, por serem insalubres
e perigosas, dada sua falta de preparo. Na ocasião, o IBGE apurou que eram 7,44
milhões de meninos e meninas que haviam entrado no jogo da vida com cartas
marcadas. Que por absoluta carência de suas famílias, eram forçados a batalhar
por nada mais do que a simples sobrevivência física, sem qualquer chance de
realização pessoal enquanto seres humanos, destinados a uma existência
carregada de frustrações, rancores e mágoas.
O
estudo do IBGE apontava claramente que os menores eram obrigados a trabalhar
porque viviam em famílias com renda mensal inferior a dois salários mínimos
(teto esse que na época era muitíssimo menor do que atualmente). Ou seja, eram
vítimas de planos mirabolantes de tecnocratas que ao longo de nossa história só
conseguiram nos enredar em dívidas, num processo maquiavélico de concentração
de renda e de antidemocracia.
É
voz corrente por aí que a miséria é assunto predileto dos intelectuais, que
nada sugerem para pôr fim a ela. Mas seria realmente assim? As soluções, se não
são mencionadas, é porque são claras demais, óbvias demais, simples demais para
serem postas em prática. Basta que se tenha uma visão profunda, um sentido
aguçado de nacionalidade. Parte da culpa
desse quadro desolador, do fato de 14% das crianças em idade escolar, 3,6
milhões delas, estarem fora das escolas, cabia à sociedade, que aceitou e até
incentivou ditaduras no País. Porque, como observou o pensador Reinhold
Niebuhr, "a capacidade de justiça do homem torna a democracia possível,
mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária".
Bem,
o estudo a que me referi data de 23 anos. Depois disso, muita água rolou
debaixo da ponte, foram criados diversos mecanismos sociais de proteção à
infância, principalmente o “Bolsa Família”, condenado por muitos (pelos que não
precisam dele, claro, pois pimenta nos olhos dos outros é colírio, como diz o
povão) que se não deram fim a essa distorção, pelo menos impediram que ela se
ampliasse. As coisas, nesse aspecto, não há como negar, melhoraram. Mas a
exploração do trabalho infantil (que é crime, conforme a legislação vigente)
deixou de existir? E nos casos em que eventualmente existam, os infratores são
punidos? Ora, ora, ora. Achar que sim é mega-ingenuidade.
Revirando
ainda mais meus arquivos, encontrei outro estudo, do mesmíssimo IBGE, mas feito
19 anos depois do que citei antes, ou seja, realizado em 2009. E qual foi a
constatação? Não há mais exploração de mão de obra infantil no País (sempre
lembrando que a prática é crime conforme nossa legislação)? Todos os
brasileirinhos e brasileirinhas, até 16 anos de idade, estão na escola como
preceitua a lei? Antes estivessem!
Esse
novo estudo conclui que a prática ainda é comum em pelo menos onze setores da
economia brasileira! Não é um e nem são dois: são ONZE!!! Essa pesquisa é mais
abrangente e, baseada em relatório do Departamento do Trabalho dos Estados
Unidos, conclui que 122 produtos são elaborados, em 58 países do mundo, com a
utilização massiva (quando não única) de mão de obra infantil. O que mais me
chateou nesse estudo foi saber que, em número de casos apurados, o Brasil ocupa
a terceira posição, empatado com Bangladesh e abaixo, somente, da Índia e de
Mianmar. Pois é, 19 anos depois e após tantos novos (e para mim providenciais)
programas sociais, a prática de exploração de crianças em nosso país continuava
mais ativa do que nunca. E desconfio que continue e talvez tenha até aumentado,
embora não possa provar.
Charles
Dickens, criador de personagens sofridos e hiper-explorados, como Oliver Twist,
David Copperfield, Nicholas Nickleby e Philip Pirrip, por exemplo, caso vivesse
nesta segunda década do século XXI no Brasil, teria campo fertilíssimo para a
criação de centenas, milhares, milhões de tantos outros tipos, tão ou mais
ofendidos e humilhados do que aqueles que criou. E nem precisaria recorrer à
imaginação. Bastaria se limitar a descrever os meninos e meninas pobres com os
quais se deparasse, sem nenhuma necessidade de carregar nas tintas. E há ainda
quem ache que o romancista inglês exagerou e criou personagens inverossímeis!
Seria alienação, burrice ou só maldade de quem pensa assim? Não consigo chegar
a nenhuma conclusão.
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