Saturday, August 03, 2013

Charles Dickens e a exploração do trabalho infantil

Pedro J. Bondaczuk

O escritor inglês, Charles Dickens, um dos recordistas de vendas de livros de todos os tempos, construiu sua magnífica obra literária denunciando, sobretudo, as péssimas relações sociais do seu país, a Inglaterra, no século XIX. Valeu-se, para tanto, de sua experiência pessoal, do drama da sua família, que chegou a ser presa e aviltada por causa de dívidas. Vingou-se, todavia, fazendo boa literatura. Daí sua fantástica aceitação até hoje.

Parte considerável de seus personagens era de crianças e adolescentes, das classes menos favorecidas, explorados de maneira consistente e persistente por alguns espertalhões, que se valiam de sua ingenuidade, inexperiência e abandono para lucrar com seu trabalho,  sem que tivessem maneiras de se defender. É difícil, se não impossível, ler os romances desse autor sem se revoltar com o cinismo e o maucaratismo de adultos em todos os tipos imagináveis de exploração de menores de idade.

Há, até mesmo, quem considere que Dickens carregou nas tintas e descreveu tipos e situações inverossímeis, tamanha a crueldade a que as crianças (muitas das quais órfãs e criadas em orfanatos que apenas serviam de fachada aos exploradores) eram submetidas em suas histórias. Entendo que quem pensa assim e interpreta dessa maneira os enredos do eminente romancista seja, no mínimo, o alienado dos alienados, incapaz de enxergar um palmo adiante do nariz. Há muita gente assim, creiam-me, em quantidade muito maior do que ousamos desconfiar.

A exploração do trabalho infantil não era pecado exclusivo da sociedade inglesa da Era Vitoriana e está muito distante de ser coisa do passado no mundo. Inclusive no Brasil, onde é considerado crime, mas que raramente é punido. Desconheço casos de punição, embora conheça dezenas de episódios em que esse delito foi e continua sendo cometido. Remexendo em papéis velhos de meus arquivos jornalísticos, por exemplo, encontrei um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), datado de 1990 (há 23 anos, portanto), trazendo dados contundentes a respeito.  

As estatísticas, na frieza dos números que apresentam, é verdade, nem sempre levam as pessoas a refletir em seu real significado. Poderiam e deveriam levar, e não apenas à reflexão, mas a ações positivas para corrigir distorções. Mas... infelizmente não levam. Por exemplo, no referido relato do IBGE fiquei sabendo que na ocasião (reitero, há 23 anos) mais de 30% das crianças brasileiras, na faixa dos dez aos 17 anos, trabalhavam. O bom senso diz que deveriam era estar estudando.

Há, certamente, os que dirão que isso se trata de algo positivo e até desejável, já que o trabalho enobrece e quanto mais cedo se começar, maiores chances se terá de fazer o que seja útil, construtivo e permanente. Essa posição fica ainda mais sólida quando constatamos no noticiário cotidiano vários casos de crianças e adolescentes cometendo toda a sorte de delitos, como roubos, furtos, tráfico de drogas e principalmente assassinatos (há casos de menores, na faixa dos doze a catorze anos, se não menos, com no mínimo meia dúzia de homicídios em seus “currículos” da marginalia).  Mas a coisa não é bem assim. Um erro nunca justifica outro.

Como já dizia Eclesiastes, "há tempo certo para tudo". É a miséria que está ditando o futuro desses menores (como era a dos personagens de Dickens), fadados a exercer tarefas secundárias, mal remuneradas e que num prazo não muito distante, serão substituídas, inclusive, por robôs, por serem insalubres e perigosas, dada sua falta de preparo. Na ocasião, o IBGE apurou que eram 7,44 milhões de meninos e meninas que haviam entrado no jogo da vida com cartas marcadas. Que por absoluta carência de suas famílias, eram forçados a batalhar por nada mais do que a simples sobrevivência física, sem qualquer chance de realização pessoal enquanto seres humanos, destinados a uma existência carregada de frustrações, rancores e mágoas.

O estudo do IBGE apontava claramente que os menores eram obrigados a trabalhar porque viviam em famílias com renda mensal inferior a dois salários mínimos (teto esse que na época era muitíssimo menor do que atualmente). Ou seja, eram vítimas de planos mirabolantes de tecnocratas que ao longo de nossa história só conseguiram nos enredar em dívidas, num processo maquiavélico de concentração de renda e de antidemocracia.

É voz corrente por aí que a miséria é assunto predileto dos intelectuais, que nada sugerem para pôr fim a ela. Mas seria realmente assim? As soluções, se não são mencionadas, é porque são claras demais, óbvias demais, simples demais para serem postas em prática. Basta que se tenha uma visão profunda, um sentido aguçado de nacionalidade.  Parte da culpa desse quadro desolador, do fato de 14% das crianças em idade escolar, 3,6 milhões delas, estarem fora das escolas, cabia à sociedade, que aceitou e até incentivou ditaduras no País. Porque, como observou o pensador Reinhold Niebuhr, "a capacidade de justiça do homem torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária".

Bem, o estudo a que me referi data de 23 anos. Depois disso, muita água rolou debaixo da ponte, foram criados diversos mecanismos sociais de proteção à infância, principalmente o “Bolsa Família”, condenado por muitos (pelos que não precisam dele, claro, pois pimenta nos olhos dos outros é colírio, como diz o povão) que se não deram fim a essa distorção, pelo menos impediram que ela se ampliasse. As coisas, nesse aspecto, não há como negar, melhoraram. Mas a exploração do trabalho infantil (que é crime, conforme a legislação vigente) deixou de existir? E nos casos em que eventualmente existam, os infratores são punidos? Ora, ora, ora. Achar que sim é mega-ingenuidade.

Revirando ainda mais meus arquivos, encontrei outro estudo, do mesmíssimo IBGE, mas feito 19 anos depois do que citei antes, ou seja, realizado em 2009. E qual foi a constatação? Não há mais exploração de mão de obra infantil no País (sempre lembrando que a prática é crime conforme nossa legislação)? Todos os brasileirinhos e brasileirinhas, até 16 anos de idade, estão na escola como preceitua a lei? Antes estivessem!

Esse novo estudo conclui que a prática ainda é comum em pelo menos onze setores da economia brasileira! Não é um e nem são dois: são ONZE!!! Essa pesquisa é mais abrangente e, baseada em relatório do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, conclui que 122 produtos são elaborados, em 58 países do mundo, com a utilização massiva (quando não única) de mão de obra infantil. O que mais me chateou nesse estudo foi saber que, em número de casos apurados, o Brasil ocupa a terceira posição, empatado com Bangladesh e abaixo, somente, da Índia e de Mianmar. Pois é, 19 anos depois e após tantos novos (e para mim providenciais) programas sociais, a prática de exploração de crianças em nosso país continuava mais ativa do que nunca. E desconfio que continue e talvez tenha até aumentado, embora não possa provar.

Charles Dickens, criador de personagens sofridos e hiper-explorados, como Oliver Twist, David Copperfield, Nicholas Nickleby e Philip Pirrip, por exemplo, caso vivesse nesta segunda década do século XXI no Brasil, teria campo fertilíssimo para a criação de centenas, milhares, milhões de tantos outros tipos, tão ou mais ofendidos e humilhados do que aqueles que criou. E nem precisaria recorrer à imaginação. Bastaria se limitar a descrever os meninos e meninas pobres com os quais se deparasse, sem nenhuma necessidade de carregar nas tintas. E há ainda quem ache que o romancista inglês exagerou e criou personagens inverossímeis! Seria alienação, burrice ou só maldade de quem pensa assim? Não consigo chegar a nenhuma conclusão.


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