Villa-Lobos “curtiu” Bach
Pedro J. Bondaczuk
A popularização da obra de Johann
Sebastian Bach no Brasil não foi algo planejado e sequer deliberado. Foi
acontecendo, espontaneaente, envolvendo os mais heterogêneos personagens, que
sequer se conheciam nem se relacionavam. Alguns historiadores entendem que o
processo começou com a Bossa Nova, com a incorporação de várias técnicas do
compositor alemão nesse movimento de renovação da MPB. Para estes, a
culminância foi a estranha (mas felicíssima) “parceria” com Vinícius de Moraes,
que compôs letra para a célebre cantata “Jesus alegria dos homens”,
transformada em marcha-rancho, gravada como “Rancho das flores”. O processo,
porém começou antes, muito antes, antecedendo em pelo menos 30 anos o
surgimento da Bossa Nova.
No caso, quando me refiro à
“popularização”, é necessário contextualizar isso. Bach tornou-se, sim,
“popular” no Brasil, mas não como os compositores e intérpretes de ritmos de
hoje, como o axé, o pagode, o sertanejo e outros tantos, que estão, a todo o
momento, por aí, na memória e na boca de todas as pessoas, inclusive (diria,
principalmente) nas das mais humildes que não têm o mais remoto conhecimento de
música. Gostam porque gostam de determinadas composições sem explicação e sem
terem que se justificar. Não foi esse tipo de popularidade que a obra do mestre
alemão conquistou.
Foi a de sair dos limitados e
escassos círculos eruditos, elitistas por excelência, e conquistar adeptos
entre pessoas razoavelmente informadas, posto que sem noção – e sem o hábito de
ouvirem – de música clássica. Foi, até como indica a mínima lógica,
popularização relativa. Ninguém saiu pelas ruas assoviando cantatas de Bach.
Longe disso. Multidões não cantaram, sequer, a adaptação de “Jesus alegria dos
homens” para marcha-rancho, como fazem, por exemplo, com o hit do momento, o
“Ai se eu te pego”, de Michel Telló, entre outros tantos. Esse tipo de
popularidade os clássicos jamais terão. E, certamente, quando vivos, nunca
pretenderam ou sonharam ter.
Johann Sebastian Bach começou a
ser popularizado no Brasil por outro gênio, e brasileiro, e igualmente
compositor, e também de música erudita. Refiro-me, claro, a Heitor Villa-Lobos.
Foi através de nove composições dele, que denominou de “Bachianas brasileiras”
que ele trouxe à baila o estilo de compor desse genial artista. Teve a (feliz)
idéia de fundir material folclórico nosso (notadamente música caipira) com
formas clássicas criadas pelo mestre de Eisenach. O resultado foi fantástico.
Claro que Villa-Lobos foi muito criticado na época por sua ousadia. E claro,
como era de seu feitio, que não deu a mínima para as críticas.
Esse tipo de homenagem a Bach,
diga-se de passagem, sequer foi exclusivo do compositor brasileiro. Outros
tantos, em outras partes do mundo, também compuseram bachianas, embora estas
nunca tenham chegado ao conhecimento do grande público. Ficaram restritas aos
meios eruditos. Um dos que seguiram esse caminho, por exemplo, foi Igor
Stravinski. Mas houve vários outros, cuja citação creio ser inútil nestas
considerações. Por isso, não a farei.
Villa-Lobos utilizou-se de um artifício hábil e inteligente para
tornar suas bachianas, digamos, mais palatáveis aos não iniciados em música
clássica. Cada uma das nove que compôs (entre os anos de 1932 e 1945) recebeu
dois títulos: um erudito e outro brasileiro. Muitas foram executadas e gravadas
como meras peças do folclore nacional. Houve quem as ouvisse e sequer
desconfiasse que se tratava de música clássica. Mas era. Coisa de gênio, claro.
A enciclopédia eletrônica
Wikipédia lembra: “São trechos
famosos de Bachianas a Tocata (O Trenzinho do Caipira), quarto movimento das n°
2; a Ária (Cantilena), que abre as de n° 5; o Coral (O Canto do Sertão) e a
Dança (Miudinho), ambos nas n° 4”. Os amantes da boa música, razoavelmente
informados, mesmo que não sejam, propriamente, “consumidores” das composições
dos clássicos, certamente já ouviram, ou até têm gravações em seu acervo, das
peças citadas, sem nem desconfiarem que elas foram compostas para homenagear
Bach e que contêm elementos característicos da sua obra. Raros são, por
exemplo, os que nunca ouviram “O Trenzinho Caipira”, mesmo que fazendo fundo
musical para determinadas peças publicitárias.
Sobre Heitor Villa-Lobos escrevi,
em 1987, longo ensaio que peço licença ao leitor para reproduzir, aqui, um
relativamente longo trecho desse texto. Creio que a reprodução é oportuna, por
definir como era o genial compositor brasileiro, que foi o ponto de partida
para o processo (que, reitero, foi espontâneo e sem líderes) de popularização
da obra, e por conseqüência da vida, de Johann Sebastian Bach.
“Heitor Villa-Lobos, ao contrário
do ar trágico assumido pelos grandes gênios, era como se fosse um meninão.
Adorava fazer brincadeiras, agradassem ou não aos que eram vítimas delas.
Alguns não o entenderam jamais. Outros, ficaram magoados, pela vida afora, como
foi o caso do maestro Guerra Peixe, que mesmo reconhecendo o seu talento,
afirmou que o compositor foi ‘um mau caráter’.
Garantiu que foi prejudicado por
ele, embora dissesse que não guardou qualquer mágoa disso. Aliás, existe um
grande folclore em torno desse espírito brincalhão, gozador, irreverente de
‘carioca da gema’.
Durante a realização da Semana de
Arte Moderna, período pouco compreendido, mas que lançou as bases do modernismo
no Brasil, realizada de 13 a 17 de fevereiro de 1922, em São Paulo, sob o
patrocínio de Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, essa irreverência
veio à tona.
Em pleno Teatro Municipal, templo
sacrossanto do esnobismo paulista, Villa-Lobos teve a suprema coragem de
apresentar-se trajando fraque, cartola, a indefectível gravata borboleta, porém
sem camisa e sem sapatos. Foi um escândalo, um ‘deboche’, conforme destacaram
os jornais da época.
Poucos entenderam, no entanto, na
ocasião, que o objetivo dos promotores do evento era exatamente esse. O de
ridicularizar o artificialismo que então predominava, não apenas nas artes como
a Literatura, a Música e a Pintura, mas, principalmente, nos ‘modismos’, nos
trejeitos e nos gostos da chamada ‘gente bem’, todos importados e inadaptáveis
ao nosso tropicalismo.
Anos mais tarde, comentando os
caminhos do nacionalismo que impôs em seu estilo de composição e, principalmente,
em sua temática, o nosso genial e irreverente artista sapecou: ‘Eu dei um
pontapé na tradição. Eu sou de hoje’. Mais do que isso. Parodiando Drummond de
Andrade, Villa-Lobos não era somente ‘moderno’, mas ‘eterno’.
Para encarnar na arte o espírito
do brasileiro, seria impossível que assumisse na vida uma postura diferente da
que caracteriza o nosso comportamento. Ficaria chocante em demasia um
compositor tentar transpor para as suas obras o brasileirismo de uma forma
sisuda, formal, engessada em regras, conceitos e preconceitos que não dizem
nada para nós.
A nossa gente é irreverente por
natureza. E admitamos, é até um pouco irresponsável na sua maneira de proceder.
Mas é alegre, de uma alegria contagiante, que impressiona a todos os que nos
visitam ou que conosco mantêm contato pela primeira vez. Somos um povo que sabe
rir de suas próprias misérias, posturas e deficiências de caráter.
Temos, entranhada em nós, aquela
postura ‘macunaimiana’, que Mário de Andrade soube perceber tão bem e transpor para
o seu delicioso personagem. É claro que o Macunaíma é uma expressão
caricatural, e não literal, do brasileiro. Mas, em certa medida, todos temos,
em nosso comportamento, um pouquinho dele. E como toda a caricatura, esta
também realça as nossas características que mais saltam à vista.
Villa-Lobos foi o autêntico
compositor nacionalista brasileiro. E como tal, não poderia ser diferente do
que foi. Gostava de um ‘chorinho’, como certamente todos gostamos. Adorava tudo
o que fosse autenticamente nosso. A feijoada, o samba, a radionovela
(posteriormente a televisão, quando esta apareceu por aqui), os filmes de
‘bang-bang’, a conversa vazia, a patuscada, o Carnaval, o papo jogado fora nas
tardes quentes e preguiçosas do verão carioca, a última anedota, geralmente do
papagaio ou do português etc.
Isto, no entanto, não quer dizer
que fosse um irresponsável. Que não desejasse uma vida melhor para si e para
todos os brasileiros ou que não sonhasse com um País onde não faltasse comida e
moradia para ninguém, escola para todas as crianças, salário digno para todo o
pai de família, probidade e coerência nos administradores e tudo aquilo que
cada um de nós reivindica, nas ruas, nos bares, em cartas para as seções de
leitores dos jornais, em artigos e em todas as nossas manifestações, públicas
ou privadas.
Dizem que quando o compositor
foi, pela primeira vez, à Europa, lhe perguntaram com que mestre europeu iria
estudar. Naquela época, era costume isso. Era comum jovens talentosos da
América Latina irem ao Velho Mundo para aperfeiçoarem-se com os músicos mais
ilustres e conhecidos de então. Villa-Lobos, meio na base da gozação, como era
do seu feitio, encarou o interlocutor e com um sorriso um tanto maroto,
retrucou: ‘Quem disse que eu vim para cá para tomar aulas com alguém? Vocês é
que vão estudar comigo’”.
Foi esse gênio folgazão e um
tanto amalucado que – usando linguagem vulgarizada pelo Facebook – “curtiu”
Johann Sebastian Bach e iniciou, por consequência, e por iniciativa
exclusivamente pessoal, por puro entusiasmo, o processo de popularização do
compositor alemão, na limitada caracterização dessa espécie de popularidade
que, convenhamos, não é (compreensivelmente) tão popular assim.
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