Pedro J. Bondaczuk
As vidas dos gênios (provavelmente por coincidência, sabe-se lá), são, quase sempre, marcadas por infortúnios de toda sorte. Claro que não se trata de nenhuma “regra”. Ademais, cada qual tem as próprias circunstâncias que o fazem mais ou menos infeliz. O que, certamente, mais os machuca é a falta de reconhecimento dos contemporâneos. Raros são reconhecidos em vida, embora muitos tenham conhecido o sucesso quando ainda podiam usufruir dele, como foram, por exemplo, os casos de Victor Hugo (na literatura e também na política) e de Georg Friedrich Haendel (na música). Outros tantos, porém, morreram esquecidos e desamparados. E o reconhecimento deles chegou (quando chegou) muitos anos após sua morte. Foi, em parte, o caso de Johannm Sebastian Bach.
E por que digo esse “em parte”? Porque não é rigorosamente correto dizer que esse gênio não foi reconhecido enquanto viveu. Não o foi, é certo, como o magnífico compositor que hoje os amantes da boa música sabem que foi. Todavia, foi reconhecido como competentíssimo instrumentista. Sua habilidade no órgão e no cravo jamais foi questionada em tempo algum. Pelo contrário. Tornou-se legendária. Foi considerado, enquanto vivo (prestígio este resgatado e ampliado quando do seu resgate também como compositor, o que se deu somente no século XIX), o maior virtuose de sua geração. Em relação ao órgão levava uma vantagem extra sobre os eventuais concorrentes. Era especialista na construção desse instrumento, dominando, portanto, todos seus segredos para extrair dele sons, melodias e harmonias que outros não conseguiam.
Claro que esse tipo de prestígio não é suficiente para imortalizar a memória de ninguém. Ou pelo menos não era. Essa fama valia e durava, apenas, enquanto o instrumentista era vivo e podia dar provas da sua competência e genialidade. Vivesse hoje, isso não aconteceria, pois suas execuções seriam, certamente, gravadas em áudio e vídeo e imediatamente divulgadas internet afora, provavelmente pelo Youtube. Mas... naquele tempo não havia o recurso das gravações. E de nenhum tipo. Só podia testemunhar a competência e genialidade de determinado instrumentista quem o ouvisse, ao vivo, de corpo presente, em algum teatro ou salão da corte. E o número desses ouvintes, óbvio, era limitado.
Hoje não se entende (eu, pelo menos, não entendo) a razão de Johann Sebastian Bach ser considerado um compositor “comum” – alguns chegaram a dizer até que era medíocre. Chego a achar que esses críticos não entendiam patavina de composição. Como pode?! Outro tipo de reconhecimento com que Bach contou (igualmente insuficiente para preservá-lo na memória da posteridade), foi o de se tratar de excelente maestro. E mais, era tido como refinado cantor. E mais ainda, era professor dos mais eficazes e de grande reputação. Como instrumentista, além de se tratar de supremo organista e insuperável à frente de um cravo, era tido como excelente, quase inigualável, violinista, autêntico virtuose.
Ora, sabendo que Bach era músico tão refinado e hábil, não daria para desconfiar que suas composições, se avaliadas com o devido cuidado e sem preconceito, tinham muito mais qualidades do que uma distraída passada de olhos pelas partituras levava os críticos a concluir?! A mínima lógica diz que sim. Mas...nunca foi reconhecido como compositor, e justamente onde sua genialidade mais luziu (e passou despercebida aos contemporâneos) o que fez com que caísse no mais absoluto ostracismo por quase dois séculos. Imaginem a aflição de sua família.
Por exemplo, tão logo ficou cego – e após o fracasso não de uma, mas de duas cirurgias (ambas a cargo do médico charlatão itinerante John Taylor, o mesmo que agravou a cegueira de Haendel) – Bach, compreensivelmente, negligenciou algumas de suas obrigações de mestre na escola de São Tomás. E, claro, perdeu o emprego.
Quando morreu, esperava-se que a direção dessa instituição, a que serviu por tantos anos, com diligência e responsabilidade, amparasse, ou pelo menos tratasse com o devido respeito, a viúva (então a segunda esposa, Anna Magdalena Wilcken, com a qual havia se casado em 3 de dezembro de 1721, uma cantora profissional com metade da sua idade, com a qual geraria catorze filhos). Não foi o que aconteceu.
Trataram-na com descaso. A pobre mulher tinha vários filhos pequenos para criar e não contava com qualquer recurso para seu sustento, já que os ganhos do marido, quando em plena atividade, mal davam para manter a família, quanto mais para fazer algum pecúlio com vistas às emergências, como aquela. Desesperada, recorreu às partituras de Bach (cantatas, fugas etc.) que tentou vender para juntar algum dinheiro. Descobriu, atônita, que elas não valiam nada. Vendeu-as, é verdade, mas como papel velho.
Além disso, desfez-se de suas preciosas pranchas, que permitiam fazer quantas cópias se quisessem das composições do mestre, principalmente a da “Arte da Fuga”, mas para que se aproveitasse somente o cobre de que eram feitas. E a “preço de banana”, como diria o vulgo.
A situação dos “herdeiros” do gênio ficou, claro, desesperadora. E tanto, que Anna teve que recorrer à caridade pública, para impedir que a filha caçula viesse a morrer de fome. É ou não é incompreensível e, sobretudo, revoltante a forma como os contemporâneos trataram Johann Sebastian Bach? Principalmente levando-se em conta de quem se tratou, ou seja, daquele que hoje é reconhecido e reverenciado como o maior compositor erudito de todos os tempos! Imaginem se não fosse...
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