Pedro J. Bondaczuk
A popularização da música de Johann Sebastian Bach no Brasil aconteceu antes, aliás bem antes, da adaptação de sua magnífica cantata “Jesus alegria dos homens” para o ritmo de marcha-rancho. Essa ousadia (que para os puristas foi “heresia”), é verdade, alçou-o à parada de sucessos. A gravação inicial, a da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, não tardou a ganhar companhia. Outros artistas também gravaram e igualmente foram bem-sucedidos. Pudera! A melodia de Bach, por si só imortal, ganhou, de “lambuja”, o magnífico acréscimo da inspirada letra de Vinícius de Moraes e a adaptação, com o nome de “Rancho das flores”, tornou-se irresistível. Nem poderia ser diferente. Procurem-na no Youtube e confiram por si sós.
A esta altura, porém, o mestre de Eisenach já era bem popular entre nós. A “parceria” com o Poetinha, não resta dúvida, foi o clímax dessa popularização, mas não sua origem. Esse processo começou muito antes e envolveu diversos outros artistas. Por isso, não irei particularizar e nem citar qualquer compositor em particular, para não cometer, se não injustiça, pelo menos impropriedade histórica.
Por exemplo, em fins dos anos 50 do século XX e início dos 60, ocorreu no Brasil um movimento espontâneo de renovação da MPB – acompanhando mudanças de caráter inovador nas demais artes, na moda, na política, na arquitetura, no comportamento social etc. – que se convencionou denominar de Bossa Nova. Nesse novo ritmo, era nítida a influência da polifonia de Bach. E não se tratou de coisa casual, não planejada, mera coincidência, mas deliberada, de caso pensado. Tanto o foi que os compositores influenciados pelo mestre alemão, sempre que entrevistados, revelavam, sem reservas e sem rodeios, qual era a fonte da sua inspiração.
A característica batida sincopada da Bossa Nova, ou seja, o tal do “bebop”, por exemplo, foi um dos elementos musicais inspirados no então “ressuscitado” (e no mundo todo), gênio de Eisenach. Os que a utilizaram (e foram, praticamente, todos os compositores daquela então nova vertente musical da MPB), não esconderam essa origem. Pelo contrário, declaram-na com orgulho e ostentação. Provaram, dessa forma, que a música de Bach não era (nunca foi) voltada à elite, como por muito e muito tempo se pensou. A “parceria” com Vinícius, portanto, foi apenas um passo a mais no processo de popularização do genial compositor alemão entre nós.
E ela foi tamanha, naquela época – que passou para a história sob o rótulo até poético de “Anos Dourados”, período de sonhos e até de certo ufanismo, que deixou intensa saudade nos que o viveram (como este Editor), que sucedeu, entre outras coisas, à conquista da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, por parte do Brasil e que culminou com a inauguração de Brasília em abril de 1960 – que um dos mais badalados “points” da moda de então recebeu um nome que remetia diretamente ao mestre germânico: João Sebastião Bar.
Situado na Rua Major Sertório, em São Paulo, esse estabelecimento era ponto de encontro de boêmios, artistas, intelectuais, estudantes universitários, enfim, da “nata pensante”, e não apenas da Paulicéia, mas de todo o Brasil. O carioquíssimo Vinícius de Moraes, por exemplo, aparecia por lá com muita freqüência. Foi ali, entre outras coisas, que o então tímido estudante de arquitetura, que viria a se tornar monstro sagrado da MPB, Chico Buarque de Holanda, fez sua primeira apresentação pública. Ali, em suas mesas, nasceram composições célebres da Bossa Nova. O bar era propriedade de Paulo Cotrim, crítico de conhecida revista brasileira de música popular. Tinha um pequeno palco, elevado, onde os artistas se apresentavam. E que artistas!!!
Creio que nunca, em qualquer tempo ou lugar, Johann Sebastian Bach foi tratado com maior familiaridade e informalidade do que entre a juventude alegre e pensante brasileira daqueles já tão distantes Anos Dourados. Certamente nem mesmo em suas tantas e frequentes conversas com os camponeses alemães que encontrava pelo caminho, nas suas tantas viagens a pé pelas cidades da Alemanha, pesquisando o gosto musical do seu povo e da sua época para incorporá-lo às suas magistrais composições, houve maior descontração e menor cerimônia do que no João Sebastião Bar.
Sei que muitos irão estranhar as minhas colocações que, por uma razão ou outra, nunca foram registradas, por escrito por ninguém. Não, pelo menos, em detalhes Ou se o foram, esses registros acabaram perdidos e não vieram a público. Não os li em lugar nenhum. E as reminiscências dessa época que tenho lido omitem a influência de Bach na MPB e, notadamente, na Bossa Nova. Registro, pois, tudo isso, baseado exclusivamente na memória e, no que para mim é o que conta ao fazer literatura: na experiência pessoal.
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