Entre o folclore e a
realidade
Pedro J. Bondaczuk
A reconstituição exata
da vida de Johann Sebastian Bach constituiu-se (e ainda se constitui) em imenso
desafio a seus diversos biógrafos. Encontrei, nas várias de suas biografias a
que tive acesso, inúmeras contradições de datas, nomes, locais e vai por aí
afora. Concluo que muito do que se escreveu sobre ele não passa de folclore,
sem nenhuma base documental. Pouco importa. O que conta é que sua memória foi e
continua sendo resgatada.
Aliás, a documentação
sobre o compositor é escassíssima. Das cartas que escreveu, poucas foram
resgatadas e as remanescentes revelam poucos detalhes ou evidências do que
pensou, fez e viveu. Algumas coisas, porém, ficaram claras, mesmo nesse tão
escasso material que sobrou a seu respeito.
Por exemplo, é nítida
sua religiosidade, refletida em praticamente todas suas composições. Era um
homem profundamente religioso a temente a Deus. Deduz-se, também, que embora
fosse de opiniões fortes, era bastante sociável e,. não raro, bem-humorado. Mas
uma coisa em especial ficou para lá de clara nesses escassos documentos: sua
dedicação absoluta, inflexível, constante, definitiva e quase fanática à sua
arte, ou seja, à música. Mesmo sendo impossível de se determinar a quantidade
exata das suas composições – mas baseados, apenas, nas conhecidas, cujas
partituras foram resgatadas – pode-se dizer, sem susto e nem risco de exagero,
que Bach foi um dos mais prolíficos compositores de todos os tempos, clássicos
ou não.
A coleção mais completa
que se conhece da sua obra é o catálogo BWV. E ele registra, em seu acervo,
mais de mil composições. Fosse esse seu número exato e definitivo, já seria uma
quantidade assombrosa, ainda mais quando se leva em conta a uniformidade e a
espantosa qualidade dessa produção. Todavia, como é consenso entre os
pesquisadores, há a convicção de que mais da metade do que compôs se perdeu ao
longo do tempo. Isso nos leva à
conclusão que, para criar uma obra tão vasta, tão rica, tão perfeita e original
(em todos os sentidos) o autor teria que “respirar” música praticamente 24
horas por dia, em todos os dias da sua vida útil. E Bach era, como a quantidade
de suas composições comprova, compositor infatigável. Gênio, sem dúvida, e sem
qualquer exagero.
Observe-se que a
atividade de compositor não era a principal da sua vida. Pode-se dizer, até,
que face à não aceitação, pelos contemporâneos, do que compunha, se tratou
mesmo de um “hobby”. Afinal, não lhe rendia nenhum dinheiro. Na maior parte da
sua vida, seu trabalho cotidiano, para sustentar sua “multidão” de filhos, era
o de instrumentista, o de cantor de corais e o de professor de música. Uma só
delas já consome um tempo enorme. Imaginem as três, simultaneamente! Para fazer
o que fez, portanto, o sujeito tinha, mesmo, que viver só para a música. E,
ainda assim...
Fico me perguntando,
atônito: onde Bach encontrava tempo para compor, e em tamanha quantidade, e com
a genialidade que se pode conferir do que restou de sua obra? Em todas as
biografias que li, essa produtividade tão intensa foi o aspecto que mais me
chamou a atenção. E olhem que sou tido e havido pelos que me conhecem como
incorrigível “workaholic”. Perto de Bach, todavia, minha produtividade é
fichinha. É um quase nada.
Uma das discussões
recorrentes, entre os hoje milhões de admiradores do mestre de Eisenach mundo
afora (entre os quais, claro, me incluo) refere-se à sua aparência. Como era a
sua figura? Era gordo, magro, alto, baixo, esguio, atacarrado, cabeludo,
careca? Sim, como era? Resta, dele, um único retrato considerado autêntico.
Todavia, não há consenso sobre a autenticidade. Muitos questionam se ele era ou
não conforme essa imagem mostra. Recorde-se que, nos tempos em que viveu, não
havia sido inventado, ainda, o recurso da fotografia. As pessoas perpetuavam
suas fisionomias, contratando pintores para retratá-las. Nem todos (na verdade
poucos) podiam se dar a esse luxo. O preço, não raro, era exorbitante, variando
de acordo com a fama do retratista. Duvido que Bach pudesse bancar esse
capricho.
A suposta imagem do
compositor, aceita como autêntica pela maioria dos pesquisadores, foi pintada
por Elias Gottlob Haussmann. A enciclopédia eletrônica Wikipédia informa que
essa imagem existe em duas versões: uma data de 1746 e pertence à Thomasschule;
e a outra é de 1748, e está em Princeton, nos Estados Unidos, integrando o
acervo da William H. Scheide Library. Não se sabe como esse retrato e a
respectiva cópia foram parar nas mãos dos atuais proprietários e nem no que os
especialistas se baseiam para atestar sua autenticidade.
Pelo que li nas várias
biografias de Johann Sebastian Bach (que continuam a ser escritas e a se
multiplicar), e pelo pouco que relatei, outro aspecto fica claríssimo. O de que
o gênio de Eisenach tinha tudo para ser esquecido para sempre, como bilhões e
bilhões de pessoas o foram, são e certamente serão mundo afora e através do
tempo, sem restar o mínimo vestígio, por ínfimo que seja, da sua existência.
Seus contemporâneos, que poderiam testemunhar que viveu, e como foi essa vida,
morreram, sem deixar quaisquer registros escritos a respeito. Sua obra foi
dispersa e só não desapareceu totalmente por exclusivo fruto do acaso.
No entanto, com mínimas
evidências que sobraram e com um ou outro “retalho” documental, sua vida, aos
poucos, vai sendo reconstituída. Certamente não da forma exata como foi. Mas de
maneira suficiente para livrá-la do total esquecimento. Partituras de sua
autoria, volta e meia, são descobertas, aqui e ali, e sua qualidade só faz
aumentar o assombro em torno de sua hoje consensual genialidade, estupidamente
não reconhecida por seus contemporâneos.
Uma das melhores
definições que já li sobre a obra bachiana foi a de um dos seus conterrâneos,
posto que da atualidade, Ernest Herrmann Meyer, membro fundador e durante
muitos anos presidente da Associação de Compositores da Alemanha Oriental (na
época que a entidade foi fundada, o país não havia, ainda, sido reunificado)
que declarou, em entrevista à imprensa, em 1985: “A obra de Bach é uma obra de
paz. Ela é dedicada à humanidade, ao amor, à beleza e ao reconhecimento da
verdade”. Por isso foi poupada da destruição. Por isso está fadada a durar
enquanto durem o mundo e o ser humano que o habita. Por isso, será reconhecida
e admirada enquanto houver pessoas inteligentes e de bom gosto em algum lugar.
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