Saturday, February 09, 2013

Entre o folclore e a realidade
Pedro J. Bondaczuk
A reconstituição exata da vida de Johann Sebastian Bach constituiu-se (e ainda se constitui) em imenso desafio a seus diversos biógrafos. Encontrei, nas várias de suas biografias a que tive acesso, inúmeras contradições de datas, nomes, locais e vai por aí afora. Concluo que muito do que se escreveu sobre ele não passa de folclore, sem nenhuma base documental. Pouco importa. O que conta é que sua memória foi e continua sendo resgatada.
Aliás, a documentação sobre o compositor é escassíssima. Das cartas que escreveu, poucas foram resgatadas e as remanescentes revelam poucos detalhes ou evidências do que pensou, fez e viveu. Algumas coisas, porém, ficaram claras, mesmo nesse tão escasso material que sobrou a seu respeito.
Por exemplo, é nítida sua religiosidade, refletida em praticamente todas suas composições. Era um homem profundamente religioso a temente a Deus. Deduz-se, também, que embora fosse de opiniões fortes, era bastante sociável e,. não raro, bem-humorado. Mas uma coisa em especial ficou para lá de clara nesses escassos documentos: sua dedicação absoluta, inflexível, constante, definitiva e quase fanática à sua arte, ou seja, à música. Mesmo sendo impossível de se determinar a quantidade exata das suas composições – mas baseados, apenas, nas conhecidas, cujas partituras foram resgatadas – pode-se dizer, sem susto e nem risco de exagero, que Bach foi um dos mais prolíficos compositores de todos os tempos, clássicos ou não.
A coleção mais completa que se conhece da sua obra é o catálogo BWV. E ele registra, em seu acervo, mais de mil composições. Fosse esse seu número exato e definitivo, já seria uma quantidade assombrosa, ainda mais quando se leva em conta a uniformidade e a espantosa qualidade dessa produção. Todavia, como é consenso entre os pesquisadores, há a convicção de que mais da metade do que compôs se perdeu ao longo do tempo.  Isso nos leva à conclusão que, para criar uma obra tão vasta, tão rica, tão perfeita e original (em todos os sentidos) o autor teria que “respirar” música praticamente 24 horas por dia, em todos os dias da sua vida útil. E Bach era, como a quantidade de suas composições comprova, compositor infatigável. Gênio, sem dúvida, e sem qualquer exagero.
Observe-se que a atividade de compositor não era a principal da sua vida. Pode-se dizer, até, que face à não aceitação, pelos contemporâneos, do que compunha, se tratou mesmo de um “hobby”. Afinal, não lhe rendia nenhum dinheiro. Na maior parte da sua vida, seu trabalho cotidiano, para sustentar sua “multidão” de filhos, era o de instrumentista, o de cantor de corais e o de professor de música. Uma só delas já consome um tempo enorme. Imaginem as três, simultaneamente! Para fazer o que fez, portanto, o sujeito tinha, mesmo, que viver só para a música. E, ainda assim...
Fico me perguntando, atônito: onde Bach encontrava tempo para compor, e em tamanha quantidade, e com a genialidade que se pode conferir do que restou de sua obra? Em todas as biografias que li, essa produtividade tão intensa foi o aspecto que mais me chamou a atenção. E olhem que sou tido e havido pelos que me conhecem como incorrigível “workaholic”. Perto de Bach, todavia, minha produtividade é fichinha. É um quase nada.
Uma das discussões recorrentes, entre os hoje milhões de admiradores do mestre de Eisenach mundo afora (entre os quais, claro, me incluo) refere-se à sua aparência. Como era a sua figura? Era gordo, magro, alto, baixo, esguio, atacarrado, cabeludo, careca? Sim, como era? Resta, dele, um único retrato considerado autêntico. Todavia, não há consenso sobre a autenticidade. Muitos questionam se ele era ou não conforme essa imagem mostra. Recorde-se que, nos tempos em que viveu, não havia sido inventado, ainda, o recurso da fotografia. As pessoas perpetuavam suas fisionomias, contratando pintores para retratá-las. Nem todos (na verdade poucos) podiam se dar a esse luxo. O preço, não raro, era exorbitante, variando de acordo com a fama do retratista. Duvido que Bach pudesse bancar esse capricho.
A suposta imagem do compositor, aceita como autêntica pela maioria dos pesquisadores, foi pintada por Elias Gottlob Haussmann. A enciclopédia eletrônica Wikipédia informa que essa imagem existe em duas versões: uma data de 1746 e pertence à Thomasschule; e a outra é de 1748, e está em Princeton, nos Estados Unidos, integrando o acervo da William H. Scheide Library. Não se sabe como esse retrato e a respectiva cópia foram parar nas mãos dos atuais proprietários e nem no que os especialistas se baseiam para atestar sua autenticidade.
Pelo que li nas várias biografias de Johann Sebastian Bach (que continuam a ser escritas e a se multiplicar), e pelo pouco que relatei, outro aspecto fica claríssimo. O de que o gênio de Eisenach tinha tudo para ser esquecido para sempre, como bilhões e bilhões de pessoas o foram, são e certamente serão mundo afora e através do tempo, sem restar o mínimo vestígio, por ínfimo que seja, da sua existência. Seus contemporâneos, que poderiam testemunhar que viveu, e como foi essa vida, morreram, sem deixar quaisquer registros escritos a respeito. Sua obra foi dispersa e só não desapareceu totalmente por exclusivo fruto do acaso.
No entanto, com mínimas evidências que sobraram e com um ou outro “retalho” documental, sua vida, aos poucos, vai sendo reconstituída. Certamente não da forma exata como foi. Mas de maneira suficiente para livrá-la do total esquecimento. Partituras de sua autoria, volta e meia, são descobertas, aqui e ali, e sua qualidade só faz aumentar o assombro em torno de sua hoje consensual genialidade, estupidamente não reconhecida por seus contemporâneos.
Uma das melhores definições que já li sobre a obra bachiana foi a de um dos seus conterrâneos, posto que da atualidade, Ernest Herrmann Meyer, membro fundador e durante muitos anos presidente da Associação de Compositores da Alemanha Oriental (na época que a entidade foi fundada, o país não havia, ainda, sido reunificado) que declarou, em entrevista à imprensa, em 1985: “A obra de Bach é uma obra de paz. Ela é dedicada à humanidade, ao amor, à beleza e ao reconhecimento da verdade”. Por isso foi poupada da destruição. Por isso está fadada a durar enquanto durem o mundo e o ser humano que o habita. Por isso, será reconhecida e admirada enquanto houver pessoas inteligentes e de bom gosto em algum lugar.
 
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