Pedro J. Bondaczuk
Que tal se fosse possível estabelecer uma parceria entre Johann Sebastian Bach, com sua magia ímpar de extrair melodia e harmonia excepcionais (como nenhum outro conseguiu com a mesma competência), com a picardia poética e a inspiração de Vinícius de Moraes, se não o melhor, um dos melhores letristas brasileiros de todos os tempos e quiçá do mundo? Pois isso aconteceu.
Calma, leitor, não pretendo enganá-lo. Sei que a trajetória de ambos está separada por mais de dois séculos. Não fiquei, pois, maluco e nem perdido no tempo, achando que ambos foram contemporâneos. Óbvio que não foram. Mas... a “parceria” existiu. Fez muito sucesso e popularizou ainda mais a obra de Bach, ou pelo menos, uma das principais delas aqui no Brasil. Explico.
Lá por volta de 1960 (se não me falha a memória) o “poetinha” teve a genial idéia, que a princípio pareceu maluca aos que dela tomaram conhecimento, de fazer uma letra, nada mais, nada menos do que para uma das mais célebres e festejadas peças musicais compostas pelo mestre de Eisenach, “Jesus alegria dos homens”, encerramento da majestosa cantata “Coração e Boca, Ações e Vida”. Dizem que tentaram demovê-lo disso. “Imaginem, se for gravada, quem irá comprar? No Brasil, dá para contar nos dedos os que gostam de música clássica”, teriam argumentado com Vinícius.
O poetinha (felizmente) não deu bola. E sua ousadia ainda mais longe. Decidiu adaptar essa grandiosa peça sacra para o ritmo de marcha-rancho!! Tinha a intuição que a melodia “colaria” no ouvido do público e a adaptação seria retumbante sucesso. E não é que tinha razão?! Foi assim que surgiu o “Rancho das flores”, gravado, em 1961, pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. Para surpresa dos céticos, a gravação estourou nas paradas de sucesso, permanecendo em evidência por mais de um ano, até 1962. Pudera! Tratou-se da união dos talentos de dois gênios, que se “tornaram” parceiros, mesmo separados no tempo por mais de dois séculos. O “Rancho das flores” foi gravado por diversos outros cantores. Fui um dos que compraram esse disco original (o da Banda) que, volta e meia, ouço com inefável satisfação estética – embora, ultimamente, o tenha ouvido acessando o Youtube. É a vantagem da modernidade.
A peça de Johann Sebastian Bach as pessoas razoavelmente informadas e de bom gosto certamente conhecem. E quem não a conhecer, é fácil de ficar conhecendo: basta acessar a internet. Simples assim. Hoje em dia, só não sabe das coisas quem não quer. Quanto à letra de Vinícius, facilito as coisas para os que eventualmente não a conheçam e reproduzo abaixo, como sempre, enlevado pelos versos do genial poeta que, se vivo fosse, teria completado 99 anos neste 19 de outubro de 2012:
Rancho das flores
“Entre as prendas com que a natureza
Alegrou este mundo onde há tanta tristeza
A beleza das flores realça em primeiro lugar
É um milagre
De aroma florido
Mais lindo que todas as graças do céu
E até mesmo do mar
Olhem bem para a rosa
Não há mais formosa
É a flor dos amantes
É a rosa-mulher
Que em perfume e nobreza
Vem antes do cravo
E do lírio e da hortênsia
E da dália e do bom crisântemo
E até mesmo do puro e gentil malmequer
E reparem no cravo
O escravo da rosa
Que flor mais cheirosa
De enfeite sutil
E no lírio que causa o delírio da rosa
O martírio da alma da rosa
Que é a flor mais vaidosa e mais prosa
Entre as flores do nosso Brasil
Abram alas pra dália garbosa
Da cor mais vistosa
Do grande jardim da existência das flores
Tão cheio de cores gentis
E também para a hortênsia inocente
A flor mais contente
No azul do seu corpo macio e feliz
Satisfeita da vida
Vem a margarida
Dos que têm paixão
E agora é a vez
Da papoula vermelha
A que dá tanto mel pras abelhas
E alegra este mundo tão triste
Com a cor que é a do meu coração
E agora aqui temos o bom crisântemo
Seu nome cantemos em verso e em prosa
Porém que não tem a beleza da rosa
Que uma rosa não é só uma flor
Uma rosa é uma rosa é uma rosa
É a mulher rescendendo de amor”.
Houve na época (como há ainda hoje, posto que em menor número) da gravação do “Rancho das flores” muitos “puristas” (para mim, retrógrados) que consideraram heresia a adaptação dessa grandiosa peça de Bach para um ritmo popular e com letra supostamente “profana”. Tolice, claro. Herético seria, tendo recursos para isso, não fazê-lo e deixar a obra prima do mestre de Eisenach com acesso restrito a uma meia dúzia de “experts”, como era até então. Ademais, o letrista não foi qualquer um. Foi Vinícius de Moraes, ora bolas!!! Duvido que Bach, se pudesse se manifestar a respeito, discordasse ou não gostasse do que foi feito.
Aliás, a tentativa de popularizar os clássicos sequer foi e nem é coisa nova, no Brasil e em outras partes do mundo. Tornou-se, até, trivial. A “Serenata”, de Schubert, o “Noturno”, de Chopin, e a “Nona Sinfonia”, de Beethoven, entre tantas composições eruditas, de gênios da música eterna, foram e vêm sendo adaptados, através do tempo, e com sucesso. Alguns desses hits ganharam arranjos bem populares, para ritmos dançantes. Outros tantos receberam o acréscimo de letras (algumas de gosto duvidoso, é verdade) e passaram a ser cantados. Nenhum desses compositores, porém, teve o privilégio póstumo de Johann Sebastian Bach (merecido, claro). Ou seja, o de contar, como parceiro, com um dos mais refinados poetas e mais hábeis e bem-sucedidos letristas do século XX e provavelmente dos vindouros: Vinícius de Moraes. Quem não conhece, mundo afora – dos Estados Unidos à Europa, do Japão à China ou Austrália – sua “Garota de Ipanema”, entre tantos e tantos hits? Pois é: como e por que, então, contestar tão feliz parceria?!!!
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