O
poder e o dever fazer
Pedro J. Bondaczuk
O
homem, como todo animal (e ele, óbvio, também o é), é dotado, pela natureza
(inflexível em suas leis), de poderoso mecanismo, tanto para sua proteção
pessoal, quanto para a perpetuação da espécie e para a defesa da sua
descendência: o instinto, posto, aqui, de forma genérica, já que eles são
muitos. Não contasse com esse conjunto de características mecânicas, certamente
já estaria há muito extinto. Nesse ponto, creio que todos estão de acordo. Os
demais animais, todos, dos unicelulares aos maiores mamíferos, também têm esse
mobilizador de ações face algum perigo, induzindo-os a atacar, quando for a
melhor estratégia, ou fugir, caso o ataque seja temerário.
Todavia,
o homem tem um diferencial com que nenhum outro animal conta: a razão. E esta é
tão poderosa que lhe faculta obedecer ou não aos instintos, quando estes se
mostrarem inadequados (às vezes são), destrutivos, perversos e perigosos aos
semelhantes. Explico melhor. Uma pessoa, com fome, desde que não destituída de
consciência em decorrência de algum desarranjo mental, mesmo em casos extremos,
dificilmente atacará outra para se abastecer de comida, apossando-se da dos
outros. Recorrerá a vários expedientes, menos a este. Poderá, em desespero, até
furtá-la. Afinal, seu instinto de sobrevivência norteará suas ações para evitar
que morra de inanição. Mas antes de agir dessa forma, ponderará: isto é certo?
Já,
digamos, um leão, não agirá dessa forma. Caso esteja faminto, e passe em frente
a uma fazenda, repleta de cabeças de gado no pasto, não irá pedir, óbvio,
licença ao fazendeiro para abater a rês que lhe sacie a fome. Não irá pensar
(supondo que tenha ínfimos resquícios de raciocínio) que é errado matar o
animal que não lhe pertence. Não tem o conceito de propriedade, que é,
exclusivamente, humano. Não verá no boi outro animal com direito à vida. Verá,
isso sim, uma presa. E, sobretudo, comida, e bem ao seu alcance. Seu instinto
certamente o moverá à ação, ou seja, a abater e a devorar o bicho mais fraco.
Só
o homem, por ser dotado de razão, tem condições de julgar, de direcionar e até
de não obedecer os instintos caso conclua que determinada ação que eles lhe
ditem lhe trará mais prejuízos do que vantagens. Em vez de atacar quem tiver a
comida que precisa, quando estiver com fome, se tiver recursos, tentará
comprá-la. Assim, evitará a morte por inanição, mas sem prejudicar ninguém (e a
si próprio, já que o outro, certamente, tenderá a reagir a um ataque). Caso não
possa comprar, apelará para a sensibilidade do outro para que a compartilhe.
Apenas em último caso, provavelmente, tentará tomá-la à força.
É
como o jurista Alfredo Cecílio Lopes, ilustre professor de Direito
Constitucional, observou num texto que li alhures: “A natureza é muito forte, o
instinto é muito forte, eu quero proceder desta maneira, mas minha razão
determina que não posso me conduzir assim”. Óbvio que nenhum outro animal,
mesmo os que se desconfia contem com um tantinho que seja de “inteligência”
(como é o caso, por exemplo, dos golfinhos que desenvolveram, até, uma forma
rudimentar de linguagem para se comunicar), tem essa capacidade, posto que em
grau ínfimo, de julgamento. É prerrogativa exclusiva do homem.
Ocorre
que muitos (e põe muitos nisso!), mesmo tendo a voz da razão a lhes ponderar se
determinadas “ordens” dos instintos devem ou não ser atendidas, acabam agindo
mal. E fazem-no não uma e nem duas vezes, mas inúmeras. Via de regra, quando
cometem erros ou, pior, delitos, tentam tapear a consciência, arranjando
pretextos de toda a sorte para se justificar, mesmo que no íntimo estejam
conscientes que os argumentos não se sustentam. Exemplo? Os ladrões, que se
apossam do que não lhes pertence (de forma violenta ou não) e que, quando
questionados, tentam convencer os outros que não fizeram nada de errado ou que
agiram em legítima defesa. Não erraram? Nem eles acreditam. E por que agem
dessa forma? Essa é a grande questão. Por instinto é que não é. Não se trata do
mesmo caso, por exemplo, do leão faminto, que abate uma rês sem consultar o
fazendeiro (e, se bobear, devora até ele).
Alfredo
Cecílio Lopes observa mais: “É aquele problema que o Eça de Queiroz colocou
naquela novela tão bonita, O Mandarim. O mandarim estava lá nos confins da
China, e tinha feito um português herdeiro de toda a sua fortuna. Se ele
tocasse uma campainha, matava o mandarim e se tornaria seu herdeiro universal.
"Apertará a campainha?", dizia Eça de Queiroz no final de sua novela.
Moral é isto: eu posso fazer, mas será que devo?”
Não
quero ser pessimista, mas a intuição e a observação induzem-me a pensar que,
nove entre dez pessoas no mundo, caso estivessem no lugar do personagem
português de Eça de Queiroz, tocariam a campainha, determinando a morte do
mandarim e entrando de posse da sua fortuna. E mais, engendrariam
justificativas, algumas tão sofisticadas que tentariam convencer que o ato que
cometeram não somente não foi errado e vil, mas foi até “piedoso”.
Provavelmente diriam que o chinês estava cansado de viver e que não tinha
coragem de dar cabo da vida. E que, tocando a campainha, lhe proporcionaram o
“descanso eterno” de que estava tão precisado, poupando-lhe mil sofrimentos.
De
tanto testemunharmos, vermos ou ouvirmos relatos, o dia todo, em todos os dias
do ano, por anos e anos a fio, de atos violentos, vis, perversos e absurdos,
nos tornamos insensíveis. Depois de certo tempo, passamos a considerá-los até
normais, embora a razão grite que não. É como o célebre artista plástico de
arte pop, Andy Warhol, declarou, posto que em outro contexto, mas cuja
declaração cabe como uma luva neste caso: “Quando você observa um espetáculo
arrepiante por muito tempo, o espetáculo cessa de fazer qualquer efeito”. E não
cessa? Exagero meu? Exagero de Warhol? E você, o que acha?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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