Clima
de perplexidade
Pedro J. Bondaczuk
O contexto político,
econômico, artístico, cultural, social etc. em 1969, ano da realização do
histórico festival de Woodstock, tido e havido como marco da contracultura,
notadamente no Ocidente, foi muito diverso do que caracterizou o ano de 1985,
quando da realização do primeiro Rock in Rio, na cidade do Rio de Janeiro.
Nesse aspecto, os dois eventos sequer comportam comparações. O primeiro foi um
ato de rebeldia (mais um, de tantos outros) contra o sistema vigente. Já o
segundo, pode-se dizer, não teve nenhum caráter de confrontação. Seu teor
foi artístico e com o objetivo de lucro
por parte dos promotores, no que foram bem sucedidos.
Em 1969, reinava, mundo
afora, pesado clima de incerteza quanto ao futuro da nossa espécie, dado o
panorama pesado e sombrio que estava desenhado para a humanidade. Pode-se dizer
que havia muita perplexidade no ar. A guerra fria, que muitas vezes esteve a
ponto de ferver, estava em pleno desenvolvimento, opondo as então duas únicas superpotências
do Planeta, que pareciam ser inimigas inconciliáveis, dadas suas concepções tão
heterogêneas de sociedade: Estados Unidos e União Soviética. A corrida
armamentista atingia o auge, com os dois lados desenvolvendo, e testando,
inclusive a céu aberto, artefatos nucleares cada vez mais potentes e
arrasadores, produzidos em quantidades absurdamente altas.
Qualquer erro de
cálculo fatalmente redundaria na destruição da Terra e na extinção de toda (ou
quase toda) forma de vida no Planeta. Dizia-se que, em caso de guerra nuclear,
sobreviveriam, apenas, baratas e escorpiões. Centenas de mísseis com
arrasadoras ogivas atômicas, pendiam, como sinistra “Espada de Damócles”, sobre
a cabeça da humanidade. Esse risco (que entendo não haver desaparecido, embora
sequer não mais divulgado) gerava no espírito das pessoas, em especial dos
jovens, uma sensação de desencanto, de ausência de perspectivas, de iminência
de catástrofe, de desespero até. Não era, óbvio, o mundo que queriam.
Desconfiavam liminarmente dos mais velhos. Quem não se lembra do lema “não
confie em quem tem mais de trinta anos?” (que na época também foi o meu)?
No Vietnã, milhares de
jovens norte-americanos estavam trucidando e sendo trucidados por pessoas que
não conheciam, mas que eram induzidos a odiar e a buscar eliminar, numa guerra
travada à sua revelia e que, ostensivamente, não poderiam vencer (como de fato
não venceram). O mito Charles de Gaulle, que havia se projetado como herói
nacional da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, começava a
ruir, dado seu exacerbado e ultrapassado conservadorismo, que resultou na
verdadeira revolução – que lembrava a Comuna de Paris da segunda metade do
século XIX – promovida um ano antes por
milhares de estudantes nas barricadas do Quartier Latin de Paris, ou de
Nanterre, notadamente nos levante de 2 de maio a 16 de junho de 1968.
Em contraposição, o
homem mostrava ser capaz de realizar proezas impressionantes, que poderiam ser
classificadas, sem exagero, de
miraculosas, da qual a de maior impacto foram os primeiros e vacilantes passos
dados por Neil Armstrong no estéril e pedregoso solo da Lua. A mídia
celebrizou, também, os bizarros “pulinhos” de Aldrin na superfície do nosso
satélite natural. Essa façanha “encucava” os jovens de então. Muitos eram
céticos em relação à descida na Lua, achando que não passava de truque, dos
tantos que se fazem no cinema, com o objetivo meramente propagandístico, para
exaltar um dos lados da guerra fria. Muita gente não crê até hoje que essas
viagens no espaço, fora da Terra, realmente aconteceram.
Os que acreditaram
nisso, a imensa maioria, nem por isso ficaram menos confusos. Provavelmente,
sua confusão foi até maior. Ficaram desconcertados com as contradições humanas,
principalmente com o fato de o homem ser capaz de dominar o conhecimento para a
conquista do espaço e ser incapaz de dominar seus demônios interiores. Achavam
contraditório e incompreensível ele poder “velejar” no vácuo infinito e hostil
do Cosmo e não conseguir conviver harmonicamente com os semelhantes em seu
minúsculo, mas acolhedor planeta, não se entendendo com vizinhos e não raro nem
mesmo com os parentes que habitam sob o mesmo teto.
O ano anterior, o de
1968, havia sido de tal sorte violento que muitos chegaram a acreditar que a
humanidade não veria sequer o seu final. O líder pacifista, defensor dos
direitos civis, o pastor negro Martin Luther King, foi assassinado. Tropas da
União Soviética invadiram a Checoslováquia, pondo fim a um efêmero sonho de
liberdade do povo checo, que entraria
para a História como a “Primavera de Praga”. Robert Kennedy, por sua vez,
tornou-se o segundo membro desse célebre clã a ser assassinado, a exemplo do
que já havia ocorrido com o irmão,
multiplicando a perplexidade principalmente dos jovens.
A mentalidade que se
instalava, então, entre milhões e milhões de adolescentes, mundo afora, era a
da necessidade de se viver cada momento de cada dia o mais intensamente
possível, pois poderia não haver o dia seguinte. A idéia era a de se fazer tudo
o que agradasse os sentidos, sem sequer medir conseqüências, face às incertezas
do cotidiano.
Os jovens começaram,
antes de tudo, por redescobrir o próprio corpo. Dessa forma, rompiam milenares
tabus repressivos, sobretudo os que se referiam à sexualidade e partiam para o
que os sociólogos e antropólogos convencionaram chamar de “sociedade
permissiva”. A nudez viria a perder o caráter pecaminoso e proibido. O advento
da pílula anticoncepcional liberou a mulher para a prática do sexo por prazer e
não mais com a finalidade exclusiva de procriação. Essa liberação (a meu ver
exagerada e irresponsável) seria disseminada em filmes, cartazes, revistas e
outras tantas formas de comunicação.
O homossexualismo e o
lesbianismo, práticas que sempre existiram, mas foram, por milênios,
camufladas, viriam à tona, às claras (o que se acentua cada vez mais nos tempos
atuais) chocando e revoltando os conservadores e acirrando sua oposição a esse
tipo de comportamento. Para muitos, ali, com essas transformações radicais dos
costumes, começava um sonho: o da paz e amor sem limites, em contraposição aos
conflitos de toda a sorte em geral e às guerras em particular. Para outros
tantos, porém, tratava-se do seu fim. Era a véspera do encerramento de uma era,
tal qual havia ocorrido nos dias que antecederam à derrocada do Império Romano
do Ocidente, quando os costumes e a moral decaíram e se aviltaram de tal forma
a ponto de suprimir da população de Roma a energia e a vontade de lutar contra
os invasores bárbaros e de preservar sua civilização.
No afã de fugir da
realidade, milhares de jovens passaram a recorrer, cada vez mais, às drogas,
algumas das quais lhes davam a falsa sensação de invulnerabilidade e poder, sob
o pretexto de que estas lhes “ampliavam a consciência”. Tremenda besteira que
praticaram, inspirados por meia dúzia de falsos gurus, destruídos, anos depois,
exatamente pelo que tanto apregoavam. Alucinógenos, como o Ácido Lisérgico (o
malfadado LSD), passaram a compor o “arsenal” de combate de garotos
desorientados e imberbes, mal saídos da infância, ao que chamavam de “caretices”.
Milhares de soldados
norte-americanos retornavam do Vietnã (e os que conseguiam retornar até que
podiam se dar por felizes), com profundas mutilações, e não somente físicas,
mas também arrasados emocionalmente, viciados em maconha, cocaína, morfina,
heroína e outras tantas substâncias nocivas a que recorriam nos campos de
batalha como muletas que os ajudavam a se tornar insensíveis e assim suportar
os horrores e barbaridades que testemunhavam e, principalmente, que
perpetravam.
Esse era o perfil e a
mentalidade de boa parte dos que participaram de Woodstock. Claro que não se
pode generalizar e nem generalizo. Muitos dos que estiveram na fazenda de
Bethel para assistir o show foram lá sem nenhuma intenção de protesto e nem de
desafio ao sistema, mas apenas por gostarem de rock. Eram pessoas
“comportadas”, integradas ao sistema, sem vícios e educadas nos moldes
tradicionais. Mas boa parte dos presentes, dezenas de milhares deles, tinha
essa característica que destaquei. Em alguns aspectos, o perfil dos que
compuseram a platéia do Rock in Rio original, no Rio de Janeiro, o de 1985, era
parecido, ou quando muito semelhante (semelhança não pode ser confundida com
“igualdade”). Mas em outros tantos comportamentos, eram profundamente
diferentes, em especial no que se refere à permissividade.
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