Saturday, February 16, 2013


No embalo da chuva

Pedro J. Bondaczuk

A chuva, notadamente a mansa e suave, a que dura horas e horas e às vezes se estende pelo dia todo ou até invade a noite e a madrugada,  tem o condão de nos trazer certa melancolia ao espírito, principalmente quando estamos sós, apreciando o estranho itinerário que gotas d’água traçam na vidraça fechada. Mas não é um sentimento ruim. Trata-se de certa ternura, despertada por lembrança de pessoas que gostamos, amadas ou amigas, não importa. Às vezes não é nem isso. Simplesmente nos entregamos à sensação de conforto que sentimos, por estarmos abrigados, livres da umidade e do frio.

Quando criança, gostava de brincar na chuva, burlando, claro, a vigilância dos adultos. Não raro, era castigado por isso (mas sem castigos nada sérios e muito menos físicos, ressalto). Às vezes, porém, era só advertido e prometia nunca mais agir assim. No entanto... reincidia no delito, na primeira oportunidade que tinha, como, aliás, todo menino sapeca, sadio e cheio de energia faz. Foram inúmeros os resfriados que me acometeram por causa disso, mas nenhum muito sério. Escrevi, até, um conto a propósito, incorporando-me em um personagem, bastante parecido comigo, mas que não era, rigorosamente, eu. Adulto, também me dei esse prazer e arquei, sem reclamar, com as conseqüências. Fiz isso, porém, em raríssimas ocasiões. Pudera!

Esse fenômeno meteorológico, tão trivial (e tão necessário à vida), é tema recorrente na literatura, especialmente na poesia. Muitos poetas utilizaram-no nos mais variados contextos. Também recorri a ele e, creio, sem fazer feio. Pelo menos gostei de um dos três ou quatro poemas que escrevi a propósito, inspirado pela chuva. A sensação mais vezes retratada na poesia é a de sutil, mas freqüente melancolia que toma conta de nós em dias chuvosos. Isso fica patente, por exemplo, neste magnífico poema de Mário Quintana, intitulado “Canção da garoa”, que diz:

“Em cima do meu telhado,
pirulin, lulin, lulin,
um anjo todo molhado
soluça no seu flautim.

O relógio vai bater:
as molas rangem sem fim
o retrato na parede
fica olhando para mim.

Chove sem saber porque...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
pirulin, lulin, lulin...”.

Lindo poema, não é mesmo? Ademais, nos desperta, assim que o lemos, indisfarçável empatia. Da minha parte, enfatizei uma bizarra beleza que vislumbrei nesse fenômeno tão natural (e indispensável à vida, reitero, embora haja circunstâncias em que possa se tornar destrutivo e até catastrófico). Meu poema foi composto em 14 de outubro de 2011, ou seja, há um ano, em plena primavera, que então foi mais chuvosa e menos calorenta que a atual. Não sei se vocês irão gostar desses versos. Eu, que raramente aprecio o que escrevo, por encontrar, a todo momento, defeitos que me aborrecem por haverem escapado de minha vigilância, gostei dele: 

Chove e a vida é bela

“Chove...
Nuvens de chumbo
expelem milhões
de agulhas de cristal.

Silêncio rompido
(silêncio quase total)
pelo som monótono
e sonífero que se espalha.
Suave sinfonia em blue,
de água escorrendo na calha.

Tanta nostalgia, responda,
quem, afinal, resiste?
A saudade instala-se, redonda.
Chove... E a vida parece triste!

Chove...
A terra, encharcada,
sorve, sôfrega,
as lágrimas do céu.

Múltiplas agulhas líquidas
compõem diáfano véu.
Gotas deslizam (que corolário!)
no vidro fechado da janela,
traçando incerto itinerário.
Chove... A vida, afinal, é bela!

Chove...
Lembranças vadias,
de manhãs chuvosas
e tardes silentes e frias
assaltam-me a memória.

Criança brincando,
(parte de uma história),
solta e desgarrada,
na rua cinzenta e vazia
navegando na enxurrada,
com sua encharcada cadela.
Lembrança nunca olvidada.
Chovia... E a vida era bela!

Chove...
Gotas de cristal
escorrem por uma rosa,
perfeita e primorosa,
específica e especial
debaixo da minha janela.
Beleza transcendental.
Chove... e a vida  continua bela!”

Fernando Pessoa, o poeta dos heterônimos, igualmente abordou o tema chuva. Sua abordagem, óbvio, foi mais literária e competente do que a minha (pudera!), mas talvez não tão lírica. Confiram o poema “O templo em oração” e julguem vocês mesmos, dando-me, todavia,  piedoso desconto:

O templo em oração

“Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vista de fora são o som da chuva ouvido por dentro…
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no facto de haver coro…
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel…
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa…”


Mas, o que dizer, então, desta maravilha composta por Cecília Meirelles? É melhor nem dizer nada. Minto, é melhor ler estes versos em voz alta, como a boa poesia requer e deve ser sempre lida, e deliciar-se com seu lirismo e musicalidade, com essa chuva de ternura a nos lavar a alma.


Dia de chuva
“As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.

Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.

Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...

quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos...

Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios...

Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e com limo pela face,
ali ficasse batendo

— ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade...

Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...

E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.

Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento”.

Finalmente, porquanto não pretendo voltar ao tema que, como destaquei, é dos mais batidos e que comportaria toda uma extensa e variada antologia, trago à baila uma das letras mais emocionantes e marcantes da MPB. Foi composta por Tito Madi e fez enorme sucesso em fins dos anos 50 e início dos 60 do século passado, na voz do autor. Confesso que tomei muito porre, curtindo homéricas dores de cotovelo, por causa de amores frustrados, ouvindo esta maravilha, de “explodir” corações, copo de uísque na mão, sobretudo na voz da inigualável Elizeth Cardoso, “a Divina”:

Chove Lá Fora

“A noite está tão fria
Chove lá fora
E essa saudade enjoada não vai embora
Quisera compreender porque partiste
Quisera que soubesses como estou triste

E a chuva continua
Mais forte ainda
Só Deus pode entender como é infinda
A dor de não saber
Saber lá fora, onde estás, onde estás
Com quem estás agora, agora

A noite está tão fria
Chove lá fora
E essa saudade enjoada não vai embora
Quisera compreender porque partiste
Quisera que soubesses como estou triste

E a chuva continua
Mais forte ainda
Só Deus pode entender como é infinda
A dor de não saber
Saber lá fora, onde estás, onde estás
Com quem estás agora, agora”.

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