Como decifrar esta esfinge das estepes?
Pedro J.
Bondaczuk
O secretário-geral do Partido Comunista soviético, Mikhail
Gorbachev, apesar de estar há dois anos no poder, continua sendo uma autêntica
“caixinha de surpresas”, especialmente para os ocidentais. Nenhum dirigente,
diplomata ou cidadão conseguiu, ainda, decifrar essa “esfinge” das estepes.
Nem mesmo a mídia sabe como
classificar essa figura marcante, se como herói ou como vilão. Se um emérito
pacificador, como há muito o mundo estava esperando, ou como um mero farsante,
que tem muita habilidade para negociar e a explora infinitamente. Seu período
no Cremlin foi uma sucessão de atos insólitos, um após outro, ao ponto dele
surpreender até a políticos tarimbados e vividos, como é o caso do secretário
de Estado norte-americano, George Shultz.
Anteontem, este funcionário
graduado dos Estados Unidos foi tomado de estupefação por Gorbachev. Foi
durante uma reunião que ambos realizaram, no histórico e reluzente Palácio de
Santa Catarina, sede do governo da URSS, prevista para durar duas horas e que
acabou se estendendo por quatro e meia.
O assunto levantado foi,
obviamente, o que se constituiu na razão principal da ida de Shultz a Moscou.
Ou seja, a possibilidade de ser firmado um acordo para eliminar os mísseis de
médio alcance do âmbito europeu. Na oportunidade, como seria de se esperar,
vieram à tona as dificuldades previstas para o entendimento.
A pedido da Organização do
Tratado do Atlântico Norte, que teme a superioridade soviética em foguetes de pequena
distância e principalmente de armas convencionais, esse empecilho foi trazido à
baila. Gorbachev encarou seu interlocutor, e como bom jogador, sem pestanejar,
jogou um “trunfo” totalmente inesperado na mesa. Propôs a Shultz: “Se a
dificuldade está nessa superioridade de projéteis de curto alcance, façamos uma
coisa. Eliminemos todos os tipos de balísticos do continente europeu”.
O secretário de Estado,
certamente, deve ter chegado a duvidar dos seus ouvidos. Ou, quem sabe, do
assessor que lhe traduzia tão insólita oferta. O fato é que relutou em assumir
qualquer posição. E acabou não assumindo nenhuma. Saiu pela tangente, dizendo
que precisava consultar antes seus aliados da Otan e mencionando vagamente a
doutrina da “resposta flexível”, que finalmente prometeu que continuaria a
vigorar.
Quem não se surpreenderia com uma
proposta dessas, ainda mais vindo de quem veio? Da União Soviética, que no
correr das últimas décadas se esmerou na arte de tergiversar e arranjar
obstáculos para qualquer tipo de negociação.
Shultz, com toda a certeza,
entendeu o que se passou com Ronald Reagan na reunião de cúpula informal de
Reykjavik, de 11 e 12 de outubro do ano passado. Naquela oportunidade aconteceu
algo mais ou menos igual, só que envolvendo alguém que teoricamente tinha
amplos poderes de decisão e que acabou deixando fugir uma preciosa chance de
entrar de vez para a história. Deve, como o seu chefe, ter tremido na base.
Estava preparado para qualquer
coisa, mas dificilmente para isso. A sua vacilação, a exemplo daquela do
presidente norte-americano na Islândia, em 1986, levou o Cremlin a fazer uma
avaliação pessimista dos três dias de reuniões, embora Washington esteja
vibrando. Principalmente porque ficou implícito que este estranho e enigmático
Gorbachev, que ninguém conseguiu ainda definir se é um anjo ou um demônio, pode
ir, ainda neste ano, aos Estados Unidos.
Reagan, certamente, deve estar
contabilizando os pontinhos em sua popularidade que um evento dessa natureza
poderia lhe trazer, em seu sítio de Santa Bárbara, na Califórnia, onde está
descansando por alguns dias. Está imaginando o enorme “show” mundial de
televisão que uma reunião de cúpula dessas poderia proporcionar.
Seria um espetáculo mais do que
suficiente para sepultar de vez as agruras do infeliz escândalo apelidado de
“Irangate”. O presidente dos Estados Unidos entende dessas coisas. E agora que
ele percebeu que seu interlocutor é um prestidigitador notável, capaz de tirar
da cartola não somente pombos e coelhos, mas girafas e elefantes, deve estar
num “frisson” terrível para que seu convite seja aceito. O que virá daí nem o
maior dos adivinhos pode vislumbrar em sua bola de cristal.
(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio
Popular, em 16 de abril de 1987).
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