Friday, February 28, 2014

Visão crítica aliada à perícia descritiva

Pedro J. Bondaczuk

O conto com que Luiz Henrique Dias Tavares participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) que tomei como referência para esta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos, tem o título de “O velho”. Foi extraído do seu livro “A noite do homem”. Sobre essa obra, aliás, há uma peculiaridade que deve ser destacada. Ela foi publicada por duas editoras diferentes, em épocas e regiões diversas, e em ambas foi sucesso de vendas. Pudera! O livro é muito bom! A primeira publicação ocorreu em 1960, na Bahia, integrando a coleção “Tule”. A segunda deu-se anos depois, quando Luiz Henrique já era conhecido além fronteiras do seu Estado, e ocorreu em São Paulo. Ambas, reitero, foram bem sucedidas, sucesso esse comprovado pelas sucessivas edições que tiveram por parte das duas editoras. O que é bom – salvo exceções – vende logo, e muito.

Antes de reproduzir trecho do seu conto “O velho” – aquele com que inicia a produção ficcional – peço licença para comentar, brevemente, um trecho da entrevista que Luiz Henrique Dias Tavares deu, em 2005, a determinada revista, especializada em História. Nela, o mestre aborda, entre outros assuntos, a situação social brasileira e no que esta tende a redundar, para o País, a longo prazo, no futuro. Acima de tudo, mostra-se cético em relação às ações dos vários governos, no sentido de promover a inclusão de milhões e milhões de brasileiros, excluídos das benesses do desenvolvimento econômico. Para ele, a escravidão não acabou. Persiste no País, mais de cem anos após a promulgação da Lei Áurea.

É verdade que isso ocorre, no seu entender, de forma dissimulada, embora em alguns grotões do Brasil ela seja até mesmo ostensiva e tão perversa como era antes de 1888. Luiz Henrique atribuiu grande parte disso ao fato dos brasileiros desconhecerem sua real história, notadamente a regional. E desconhecem mesmo. Ou melhor, “desconhecemos” (pois também sou ignorante neste mister). Esse desconhecimento possibilita que espertalhões se aproveitem da vulnerabilidade social dos mais humildes e desprotegidos e explorem-nos, com a mesma sem cerimônia, como faziam os antepassados da chamada elite nos tempos anteriores ao propalado fim da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888. Para Luiz Henrique, todavia, essaa servidão ainda não acabou. Está, apenas, disfarçada. E essa exclusão social persistente é uma das causas do atraso crônico do País quando analisado no conjunto e não apenas enfocado por algumas regiões mais desenvolvidas, como o Sudeste e Sul, onde o atraso e a exploração também existem, mas não são tão ostensivos e nem tão generalizados.

“O Brasil só será o Brasil em 2050”, afirmou, na oportunidade. Passados quatro anos, em outra entrevista que deu, em 2009, Luiz Henrique sustentou a mesmíssima opinião, a despeito de inegáveis avanços sociais ocorridos ao longo dos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Afirmou, nessa ocasião: “Não vejo avanço no ensino da história dos Estados brasileiros, em especial no Norte e Nordeste. E, de vez em quando, ainda aparecem denúncias de escravidão. Não é exploração do trabalho. É escravidão. A Lei Áurea é uma mentira”. Por tudo o que vejo e que leio, e pelo que meus amigos escritores, que vivem em lugares mais distantes do Brasil (nos chamados “grotões”), me relatam, concordo (infelizmente) com Luiz Henrique.
    
Quanto ao seu conto “O velho”, cujo início reproduzo abaixo, chamo em particular a atenção do leitor para a incrível capacidade descritiva desse notável ficcionista, que não fica nada a dever ao consagrado historiador. Suas palavras são tão precisas e bem colocadas, que conseguimos “visualizar”, sem a necessidade de nenhuma ilustração gráfica, o cenário onde o enredo se desenvolve. E, principalmente, vemos nitidamente a “fotografia”, de corpo inteiro, dos personagens que o contista cria, calcados na realidade. Se acharem que estou exagerando, confiram, e certamente me darão razão. 

“Era uma terra amarela, petrificada, aberta em sulcos largos. Sob o amanhecer, ficava roxa e, enquanto o dia não surgia de todo, apresentava duas tonalidades bem distintas: uma, cinzento-escuro, outra verde-carregado. Sob o cinzento-escuro ou o verde-carregado, estendiam-se parte das terras amarelas e muito das terras negras. Era possível diferenciá-las. As terras amarelas subiam e desciam às encostas, em diversas faixas compridas e rasgadas. Por sua vez, as terras negras, deitadas ao longo daquele pequeno vale de Jaguaribe, cobriam as baixas, margeando o rio, os afluentes e os pequenos cursos dágua. Terras descansadas e úmidas. Nos meses sem chuva são as únicas cultiváveis. Os homens as revolvem – com o gume dentado das suas enxadas; elas recebem as sementes e germinam.

Agora está clareando o dia. A baixada é um lençol branco, coberto de espuma.

No recuado, o galpão dos agregados semelha um barco, mas um barco estranho, de quilha reta. Alguns bois ruminam perto – pontos sombrios, parados. De repente, no mundo impreciso, longos rasgões cor-de-laranja iluminam a baixada e as encostas. As folhas verdes do canavial novo, erguidas sobre a terra, ficam tocadas pelo fogo. É o dia.

Acordado com os primeiros galos o coronel veio esperar o sol. Está sentado em cadeira de espaldar alto. Avança o corpo, força a vista no extremo  do campo, e até além, além do longe, depois da linha entre o negro e roxo. Investiga um instante aquelas terras que são domínio seu. Acha tudo bom, sob o clarão que se embranquece, e se recosta na cadeira para tossir melhor.

Estava velho. A pele, couro áspero e rugoso, despencava-se pelo rosto; no ventre, formava ondas. As pernas emperravam, pesadas. Com esforço grande arrastava o chinelão de couro cru. No rosto largo e curto, os olhinhos, remelentos, enxergavam menos.

A voz, antes forte e cheia, soava fraca e sem tom. Tornara-se desleixado. A barba crescia informe; a pêra alongava fios sujos de fumo e catarro. O bigode introduzia-se na boca. Na calça de urucubaca os restos de urina alongavam pernas e pontos.

Sentado no varandado, bengalão de castão de ouro entre as pernas, o casaco fechado, as mãos de veias inchadas sobre as coxas magras, procurava ver o nevoeiro se afastar na baixada.

O sol se espalha. Sobe fumaça do galpão, surgem ruídos. A cabeça do velho pende para a frente; cochila. Os fatos se embaralham no sonho, enxerga bois e canaviais, a baixa se alagando, é então a cheia de 19, o Jaguaribe barrento, subindo para as terras negras, cobrindo-as, espraiando-se para as terras amarelas (...)”


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