Mestre da narrativa
curta
Pedro
J. Bondaczuk
O conto com que Hélio
Pólvora de Almeida participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR,
Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos
sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, tem o título de “Ninguém está
inteiro”. Foi extraído da revista “Senhor”, uma das tantas publicações de que o
notável jornalista e escritor se valeu para divulgar sua obra densa,
meticulosa, observadora e exemplar de mestre da narrativa curta. Embora se
trate de uma história anterior à época de sua maior produção, é um exemplo
típico, exato e característico do seu estilo de narrar.
A esse propósito,
aliás, embora eu tenha chegado a idêntica conclusão, deixo por conta de alguém
que o conheceu pessoalmente e que com ele conviveu, a descrição, por ser mais
precisa do que a que eu eventualmente poderia fazer. Refiro-me a Aleilton
Fonseca, que em seu discurso de recepção ao nosso personagem, quando se sua
posse na Academia de Letras de Itabuna, assim se expressou: “Hélio Pólvora opera a síntese perfeita do
modo definido da narrativa clássica, com os efeitos narrativos modernos que
resultam do manejo do foco narrativo, em que o narrador não apenas conta a
história, mas o faz consciente de que a grandeza do gênero curto reside na
forma mesma de narrar. Expressivo elemento de composição, as surpresas, súbitas
revelações, revigoram o enredo e fazem parte da própria concepção da narrativa.
Elas enredam estrategicamente o leitor e dão fôlego ao texto, além de motivarem
o próprio autor em seu trabalho de ficcionista”.
E Aleilton acrescenta,
mais adiante: “Em cada conto de Pólvora,
o narrador conduz os passos da trama, com intimidade, senhor dos fatos, dos
enredos e dos desfechos, na dosagem exata, com andamento bem ajustado. Seus
contos são exemplos de técnica, de adequação, de ritmo, de marcação temporal e
de jogo dialógico. Neles as informações se adensam num movimento contínuo,
concentrando sentidos para instaurar efeitos de leitura e de compreensão, como
fluxo revelador que impressiona e provoca a reflexão”.
Essas características
ficam evidenciadas no conto “Ninguém está inteiro”, do qual reproduzo, abaixo,
um trecho, mais especificamente, seu início. Nele, Hélio Pólvora trata do caso
de um animal de estimação e de seu destino. Ressalto que não se trata de nenhum
desses bichinhos caseiros, que criamos com tanto desvelo e aos quais nos
apegamos, como cães, gatos ou, até mesmo, papagaios. Nada disso. No caso,
trata-se de um porco, “um pé duro, longo, preto, pernilongo”. O animal nem
mesmo era estimado por toda a família. Muito pelo contrário. Era o xodó,
apenas, da negra Ana, que sinhá Clara “criava desde menina”. E parecia ter
rancor (pelo menos é o que o autor sugere no enredo) tanto pela agregada,
quanto, e principalmente, por seu bicho de estimação.
Não irei, óbvio,
revelar o desfecho dessa história. Deixo-o por conta da imaginação do
percuciente leitor. Apenas chamo a atenção para os detalhes dos personagens e
do ambiente, que Pólvora descreve com a precisão característica do jornalista,
mas com a criatividade do mestre de ficção:
.
“Um
pé duro. Longo, preto, pernilongo. Cauda balouçante, hábil para espantar moscas
importunas. E focinho trêmulo, inquiridor, ventas que se abriam farejando
odores comestíveis no quintal, na roça de mandioca, no terreiro onde a negra
Ana, cheia de preguiça para ir mais longe, atirava o lixo. Sob o focinho do
porco o monturo parecia ter mãos e pés: agitava-se, sacudia-se em corcovos,
avizinhava-se da pedra roliça que servia de escada ao batente da porta da cozinha.
Sinhá Clara torcia o nariz:
-
Porcaria. Qualquer dia desses o lixo entra pela casa.
E
cravava na negra Ana os olhos vermelhos, miúdos, que se espremiam ainda mais na
força da raiva, faiscantes. A negra disfarçava; sentia nas costas o olhar
queimante da dona que a criava desde menina, mexia-se simulando ocupações
urgentes. Curvada, inchava as bochechas negras no sopro difícil, engolia
fumaça, os pulmões chiavam. Soerguia o corpo, inteirava-se com um olhar de
revés da insistência dos olhos miúdos e vermelhos em fitá-la, tremia; outro
sopro, ameaça de sufocamento, finalmente o ar dos pulmões castigados alumiava e
aquecia a brasa, acendia a chama, os gravetos retorciam-se como lagartos ao sol
e lambiam o fundo da panela. Mas o olhar de Sinhá Clara já voltara, com
desgosto, ao monte de lixo que devia estar além do mamoeiro (se a negra não
estivesse caindo de preguiça), e avançava agora manobrado por uma força
invisível. Sacolejava-se, ruía, despedaçava-se muito perto da pedra roliça – e
de dentro dele saía, mais negro ainda, coberto de cascas de laranja e outras
sobras do jantar da véspera, o porco. Sinhá Clara ia-se com um muxoxo que
encovava as faces magras, enfeiava o rosto tisnado de mulher biliosa em dia de
desgraça (...)”.
Eu poderia, ainda,
escrever páginas e mais páginas a propósito desse escritor baiano (sem esquecer
sua condição, principalmente, de jornalista, mas também de meticuloso e preciso
tradutor), provavelmente até um livro inteiro, mas não o farei. Isso
extrapolaria os objetivos desta série de estudos que, dada a escassez de tempo
e de espaço, tem, necessariamente, que ser resumida, tratada, apenas, em seus
aspectos essenciais, ou aqueles que julgo como tais. Para encerrar estas
considerações, nada mais apropriado do que recorrer, de novo, a quem conviveu
(convive?) com nosso personagem e que, por razões óbvias, pode expor, com muito
maior propriedade do que eu, as razões desse escritor ser considerado tão
importante para as letras do seu Estado e do País.
Aleilton Fonseca, em
seu discurso de recepção a Hélio Pólvora, na Academia de Letras de Itabuna,
afirmou em certo trecho: “Festejado pela
crítica, os galos da aurora (referência ao livro de estréia, do mesmo nome, do
ficcionista grapiuna) abriram a Pólvora um rastilho fecundo de contista refinado,
senhor da palavra exata, estilista da frase peculiar, aliciador de temas
fortes, alquimista da ironia mais fina, do ‘humour’ mais ácido e gracioso, que
soube herdar da botica machadiana Leitor e parceiro de mestres como Edgar Alan
Poe, Chekov, Machado, Maupassant, é dessa estirpe de estilistas e fundadores de
que faz parte o contista contemporâneo Hélio Pólvora. Fez-se um mestre que
amalgama em sua lavra as qualidades da narrativa curta, conforme as lições de
seus predecessores”. Evidentemente, assino embaixo.
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