Saturday, February 22, 2014

Um mestre da ironia

Pedro J. Bondaczuk

A identificação do estilo de um escritor, de qualquer deles, notadamente de um ficcionista, é tarefa muito mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Ademais, por mais que ele esteja (ou pelo menos pareça estar) consolidado, nunca, de fato, está. Não pelo menos por completo. É mutante, de acordo com o exercício do texto, o tempo e as circunstâncias de cada um. E de sua personalidade. Em alguns casos ele se modifica discretamente, com a correção e a supressão de eventuais vícios de linguagem. Em outros, as mudanças são mais acentuadas e, não raro, caracterizam, nas obras finais de carreira, um estilo completamente diferente do das iniciais. Por isso, tenho receio em fazer esse tipo de identificação. Quase sempre, sou contestado, ou pelo próprio autor, ou por quem conheça o conjunto de sua obra mais do que eu (o que nem é muito difícil).

O estilo de João Ubaldo Ribeiro – o décimo segundo personagem desta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, com base na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – foi se alterando, em alguns casos sutilmente e em outros radicalmente, de uma obra para outra. Pelo menos é o que consigo constatar ao fazer breve análise a propósito (logicamente, sujeita a equívocos).

Duas características básicas, porém, em sua forma de narrar permanecem imutáveis e creio que não haja contestações a propósito. Uma é o uso recorrente desse recurso complicadíssimo (e perigoso para os imperitos), que só os grandes mestres do texto sabem usar com a devida aptidão (e cautela): a ironia. Sim, João Ubaldo é irônico, e até em textos em que aparentemente não caiba esse tipo de procedimento. Contudo, é habilíssimo no seu manejo. É um “mestre da ironia”.

A outra característica onipresente é a contextualização, ou seja, a colocação do enredo no devido contexto social. Todavia, esta não é apenas a da sua região (como outros tantos contistas que analisei e que ainda irei analisar nesta série de estudos que se limitam a tratar da realidade presente do lugar em que nasceram) e  nem só do seu Estado, mas do Brasil inteiro e, quando é o caso, até do mundo. Não vou colocar, porém, minha mão nessa cumbuca, porquanto esta não é a minha seara. Deixo a tarefa de identificação e análise do estilo de João Ubaldo para os críticos literários, muito mais familiarizados do que eu nesse tipo de estudo. Aliás, nem sempre concordo com suas conclusões. Discordo radicalmente de muitas delas, sempre buscando fundamentar as razões da discordância, para não cair na armadilha do mero “achismo”.

Analisando, porém, alguns contos e romances do nosso personagem, e alertado pelo escritor, diplomata e crítico literário Antonio Olinto (ademais, membro da Academia Brasileira de Letras e, portanto, companheiro de João Ubaldo), detectei uma característica em seu estilo que me parece recorrente. É um recurso que utilizo na maioria das minhas histórias (em pelo menos um terço da minha produção) e que conheço como “ação em media re”. Consiste em construir as estruturas narrativas começando a história pelo meio, para depois relatar como ela começa e, finalmente, concluí-la, mantendo suspense sobre o desfecho quando possível até a última linha. Claro, não são todos os contos e romances dele que apresentam essa conformação. Mas ela está presente em muitos deles.

Já que mencionei Antonio Olinto, recorro aos seus conhecimentos (com informações que colhi na enciclopédia eletrônica Wikipédia) para apresentar mais um pouco do estilo do nosso personagem. O respeitável crítico observa: “(...) Como falar deste país sem o lanho do humor? Em tudo insere João Ubaldo a visão do humorista, que vê o que não aparece, identifica a nudez das gentes, entende os pensamentos ocultos”. Guardadas as devidas proporções, o jovem cronista Fernando Yanmar Narciso age da mesma maneira em suas crônicas. É o tipo de crítica que, na minha visão pessoal, realmente se mostra eficaz. Aliás, provavelmente, até, seja o único que apresente eficácia.

Em outro trecho de sua análise, Antonio Olinto constata: “No fundo, chega João Ubaldo à criação de um país e de um povo, país dele e povo dele, mas também país que existe fora das palavras  e povo que ri fora e dentro das palavras. As duas realidades – a real, que envolve o caminho de cada brasileiro, e a realidade não menos real, mas com outras vestiduras – mesclam-se na obra de João Ubaldo de tal maneira que ele acaba promovendo uma invenção do Brasil e uma invenção de cada um de nós. Nisso – e no modo como pega no país para o mostrar pelo avesso, e nas gentes desse país, para mostrá-las de cara lavada – provoca uma reação de espanto e incredulidade”.

Partilho, com vocês, o encerramento do conto com que João Ubaldo Ribeiro participa de “Histórias da Bahia”. Essa produção ficcional foi extraída do livro “Reunião”, que ele publicou na companhia de David Salles, Sônia Coutinho e Noênio Spinola. Seu estilo, nessa narrativa, lembra muito aquele gênero cinematográfico, sem enredo definido e sem personagens centrais: a “nouvelle vague”. Alguns, gostam... outros, detestam... Enfim, é uma forma, e das mais originais, de narrar.          

“Josefina”

“(,,,) Entrar pela manhã a dentro e ir pela tarde monotonamente, esperando a noite e paradice da noite até o outro dia. “Agora chegarei lá”, pensa Josefina, olhando pela janela do ônibus, “e subo o elevador e digo bom dia, bom dia, bom dia, os ônibus cada dia mais cheios, a vida está pela hora da morte, e sento na mkesa marrom e tiro o casaco e olho a papelada em cima da mesa e tiro o cigarro da bolsa, acendo o cigarro, levanto a tampa da máquina e bato na máquina, a máquina – qwertyu – indicador, médio, mínimo e o polegar embaixo, a borracha e o carbono dentro da gaveta. E dez horas digo está na hora do lanche, e desço, converso e como, e depois volto e sento e bato na máquina”.

Os começos de tarde quentes e úmidos, são insensíveis pelo lado de dentro, no ar condicionado do escritório. Josefina pensa “mentira, mentira, mentira, a tarde não é feia, a tarde é quente e quente, não é fria como aqui, mentira, mentira, mentira”. Lá embaixo a tarde faz todos andarem devagar e comedidos, um contraste engraçado com os automóveis que deslizam depressa e um ou outro cachorro que passa correndo e pulando entre as gentes. “Mentira”, Josefina pensa. “A tarde é como está lá embaixo e não como está aqui. Mentira, mas que me adianta saber da mentira?”

Sair devagar à noitinha, quando todos saem depressa e parar junto às colunas cor-de-rosa, passando a mão em redor delas, pondo um pé na frente do outro em curva lenta, sem ver quem passa. Encostar na coluna cor-de-rosa e pensar sem compromisso em tudo que quiser pensar e se sentir muito livre só por um momento, se sentir completamente livre no meio escuro entre as colunas, até que alguém passe e diga alguma coisa sobre o tempo ou amanhã ou o cinema defronte e quebre todo o mundo formado, num instante. Sopre com as palavras os pedaços do mundo pequenino de Josefina e a deixe novamente presa e só a faça caminhar de novo até o ônibus e o edifício sobre as casas anãs de teto de zinco, e a faça entrar em casa, há trinta e cinco anos seis meses e oito dias (em breve nove) a mesma coisa.

Ficar triste encostada na coluna cor-de-rosa e desejar todos os homens do mundo. Josefina põe o corpo desconsolado contra a coluna e deseja todos os homens do mundo”.


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