Contista com “gostinho
de quero mais”
Pedro
J. Bondaczuk
O conto com que James
Amado participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro,
1963) – obra que tomei por referência para esta série de estudos sobre alguns
dos principais ficcionistas baianos –, intitulado “O sentinela”, foi extraído
do “Suplemento Literário” do jornal “Diário de Notícias” da Cidade Maravilhosa.
Na ocasião, o autor havia publicado um único livro, “Chamado do mar”, e assim
mesmo um romance, que, no entanto, caiu, de cara, no gosto da crítica e do
público. Tornou-se, num piscar de olhos, best-seller nacional. Em questão de
semanas, esgotou a edição original, o que levou a Martins Editora a rodar
várias outras. E todas esgotaram-se rapidamente. Em suma, a obra foi um
sucesso.
Os meios literários e o
público esperavam, pois, que o romance fosse o primeiro de tantos, dando
sequência a uma carreira que, como tudo indicava, tinha tudo para ser das mais
promissoras. Tinha... Não foi. James Amado nunca mais publicou nenhum outro
livro do gênero. Aliás, não só dele, mas de nenhum outro. A exceção foi “Água
branca”, no qual o autor estava trabalhando quando do lançamento de “Histórias
da Bahia”, mas que só veio a público décadas depois, agora, recentemente, já
nos primeiros anos deste século XXI. Por que esse prolongado “silêncio
literário”? Para mim, é um mistério. Podem ser aventadas várias hipóteses, mas
certeza, certeza mesmo, só James tem. Não sei se revelou o motivo para alguém.
Se o fez, isso não chegou ao conhecimento do público.
A amostragem do seu
talento, ou seja, o conto “O sentinela” incluído na antologia que tomei por
base para esta série de estudos, deixa, em quem a lê, aquele “gostinho de quero
mais”. James, todavia, não nos satisfez nesse aspecto. Uma pena, porquanto,
pelo menos com esta história, mostra ser um contista magnífico, que teria muito
que acrescentar à Literatura. O estilo empregado é o mesmo do romance “Chamado
do mar” (este sim obra que li, reli, analisei e comentei), que tanto me
entusiasmou e arrancou rasgados elogios de críticos muito mais gabaritados do
que eu, como Otto Maria Carpeaux, Roger Bastide e, claro, do seu ilustre irmão,
Jorge Amado. Embora cenários e enredo do conto e do romance sejam diferentes,
ambos, no entanto, enfocam problemas humanos, desgraçadamente comuns, desses
que só quem os enfrenta sabe o quanto doem, revoltam e humilham.
Leiam este trecho com
que inicia “O sentinela” e concluam, por si sós, se a Literatura brasileira,
notadamente a de ficção, perdeu ou não perdeu importante contribuição pelo fato
de James Amado haver mantido sistemático “silêncio literário” por tantos e
tantos anos:
“Esta
é a história do rosto de Anita, de como ele se recobriu para sempre de uma
expressão tristonha. Não era assim no tempo em que ela vivia em Estância. O rio
passava no fundo do quintal, ruidoso sobre as pedras do Sequeiro. Anita tinha
dezessete anos. Gorducha de corpo, de rosto e de mãos, dois olhos redondos
pareciam riscados sobre o nariz chato, o que lhe dava um ar engraçado. Também
seus movimentos pareciam cheios de alegria, surpreendentemente ágeis na figura
baixota.
A
casa vivia sempre fechada. O pai saía de manhã para o armazém, batia a porta da
rua que se abria novamente apenas para deixá-lo entrar à hora do almoço e da
janta. A mãe vivia do quarto para a cozinha, evitava a sala e suas janelas que
davam para a rua. Todo mundo sabia que o marido “botara casa” para uma rapariga
vinda de Aracaju, ela era uma mulher desprezada, trancada naquela casa com sua
vergonha e sua humilhação. Quando o marido passou a responder com pancadas e
gritos aos seus rogos magoados ela deixou de ir à missa das seis aos domingos e
não mais se mostrou a ninguém, como o animal doente que deixa o rebanho para
morrer sozinho no mato. A casa onde o sol não penetrava ganhou um cheiro de
coisa mofada, de moradia esquecida, o mesmo jeito que a mulher tinha: deixara
de lutar, apenas resistia em silêncio. E o silêncio da casa também parecia
cheio de mofo, pesado.
Anita
era sua companheira, mas nos últimos tempos nem reparava muito nela,
ensimesmada, naquele silêncio que comandava a lentidão dos seus gestos tardos
nos afazeres da cozinha. Quando o marido chegava para jantar ela se recolhia ao
quarto, Anita era quem servia à mesa. Mas se ele estava bêbado, o que não era
raro, erguia-se durante a refeição, abria a porta da camarinha sem janelas, sem
uma palavra apontava a cadeira do outro lado da mesa. A mulher obedecia, em
silêncio. Ele voltava a comer, seu corpo grande dominava com ruído o ambiente,
os braços grossos e peludos se moviam com energia. Os olhinhos estreitos e
vivos evitavam a mulher. Mas eram irresistivelmente atraídos para ela e
pareciam não poder suportar-lhe o ar de mártir, aquela expressão de sofrimento
sem remédio causava no marido uma irritação que aumentava a cada instante. Ela
o sentia e, de repente, tentava levantar-se, voltar ao quarto. Do outro lado da
mesa ele se erguia bruscamente, caminhava até ela, cedia ao impulso
incontrolável e engrolando insultos com a boca cheia, punha-se a bater-lhe.
Anita vinha correndo da cozinha, segurava-lhe os braços até que a mãe, aos
recuos, caía de joelhos diante do nicho no fundo da sala. O pai
desvencilhava-se com um safanão e saía batendo a porta.
Embora
tomando o partido da mãe, Anita se sentia atraída pelo pai, apesar de
condenar-lhe o procedimento. Ele era uma criatura estranha àquele ambiente de
penumbra e de silêncio, de submissão ao sofrimento e ao pranto. Grandalhão,
ruidoso, mesmo quando queria se mostrar manso sua voz era poderosa e
penetrante. Para Anita ele era também uma criatura de mistério, cheia de um
fascínio terrível: ela sabia onde era a rua da “sujeita”, a casa pintada de
verde-garrafa com janelas azuis, na ponta da cidadezinha. Quando ia à feira,
aos sábados, fazia um rodeio para não passar por ali. (...)”.
Ressalto, a título de
curiosidade, a importante contribuição de James Amado para que uma das obras
mais conhecidas e festejadas do seu ilustre irmão fosse levada às telinhas de
televisão e se tornassem populares e acessíveis a um público não especializado
em Literatura. Refiro-me ao enredo de “As mortes de Quincas Berro D’Água”, que
ele adaptou para um “Caso Especial” da Rede Globo, exibido em 1998, que fez
história na TV. Assisti, boquiaberto, a essa apresentação e fiquei tão
impressionado (ou encantado, como queiram) com seu realismo e perfeição, que
tenho na memória até detalhes aparentemente ínfimos, desses que em geral passam
batidos do espectador, dessa obra-prima literária, que se tornou, também,
primor no que diz respeito à dramaturgia.
Pudera! O referido
“Caso Especial” foi uma feliz e rara conjunção de gênios que só acontece de
quando em quando. A história, como destaquei, é de um dos escritores
brasileiros mais conhecidos, lidos e festejados através do mundo. A direção
esteve a cargo de ninguém menos do que Walter Avancini, que dispensa
comentários. O elenco contou com uma constelação magnífica de astros e estrelas
incontestáveis, como Paulo Gracindo, Dina Sfat, Stênio Garcia, Flávio
Migliaccio e Antônio Pitanga. Mas entendo que essa perfeição provavelmente
(diria, certamente) não seria atingida sem a competentíssima adaptação do livro
para a TV feita por James Amado. É questão de justiça, portanto, nunca perder
de vista este fato.
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