Gênero isento de
desgaste
Pedro
J. Bondaczuk
A novela, na televisão
brasileira, vem revelando uma capacidade incrível de resistência no gosto do
público. Em várias oportunidades já se previu seu declínio, e alguns chegaram
mesmo a predizer sua extinção, mas o que se observa é que, à medida que os anos
passam, ela conserva o seu interesse e em alguns casos até o amplia, como vem
ocorrendo atualmente com este autêntico fenômeno que é “Roque Santeiro”.
O gênero, nem por isso,
é aceito em determinados círculos na nossa “inteligência” tupiniquim. Muitos
vêem nele riscos ideológicos inenarráveis. Outros, influência maléfica no
comportamento das pessoas. Outros, ainda, uma forma de cristalização social, de
dominação de uma classe sobre outra. No final das contas, tais críticas acabam
não resistindo a qualquer análise mais fria e isenta e se revelam ser aquilo
que são: tolices. Meros assuntos para análises pseudo-sociológicas, tresandando
a leituras apressadas e mal digeridas de manuais sobre o assunto.
Muito antes do
aparecimento da televisão, a novela era mania nacional, alcançando a
praticamente todos os setores da nossa sociedade, através do rádio. Antes da
criação desse veículo, porém, ela já existia e ajudava a vender jornais,
publicada em capítulos diários nos tão conhecidos folhetins do passado que, se
fossem novamente lançados, não tenham dúvidas, fariam idêntico sucesso ou, quem
sabe, até maior, já que os recursos gráficos disponíveis são muitíssimo mais
avançados.
O gênero satisfaz a uma
necessidade humana de fuga, de transferência de problemas, de catarse coletiva.
Mas esse processo não pode ser classificado, como alguns o fazem, de alienação.
Afinal, todos os problemas que encontramos em nosso dia a dia, toda essa
competição desgastante e na maior parte das vezes eivada de frustrações, todo
esse sistema neurotizante que nos envolve na chamada vida moderna, são
abordados e vividos pelos personagens das suas diversass histórias. Os bons e
os maus, com os quais topamos cotidianamente, também estão presentes. A
diferença é que, ao contrário da vida real, os primeiros acabam sempre
premiados por suas virtudes e os segundos, punidos por sua perversidade. Mas
até isso é saudável, pois serve como desforra psicológica para o telespectador.
Para muitos críticos, o
gênero permanece o mesmo, basicamente, desde que apareceu pela primeira vez na
TV. Isso reflete, contudo, apenas uma grande falta de memória deles ou total
desconhecimento do assunto. As novelas mudaram, e bastante, tanto na temática
abordada, quanto nos figurinos, cenários, direção e, principalmente, na maneira
de serem interpretadas. Estão distantes os tempos dos “Sheiques de Agadir” e
“Mamães Dolores”. Das primeiras histórias exibidas no vídeo. Embora o esquema
básico fosse conservado, hoje os personagens estão muito mais próximos de nós.
Podemos encontrá-los nas ruas, nos ônibus, nos bares, na vizinhança de nossa
casa ou até mesmo dentro dela, entre nossos familiares. Quase que podemos
tocá-los.
Não são mais as figuras
distantes no tempo e no espaço de antigamente. Representam pessoas como nós, de
carne e osso, com todas as nossas virtudes e os nossos defeitos. Mesmo no caso
de “Roque Santeiro”, evidente caricatura dos costumes nacionais, tipos com os
quais já topamos pelo menos uma vez na vida são focalizados. Em “Ti-ti-ti”,
cujo próprio título, a princípio, parecia não recomendar muito a novela, mas
que está se revelando de interesse surpreendente, dado o bom humor que
transmite, essa verossimilhança é ainda maior. Sem partir para a mera
caricatura, a história mostra a competição entre dois costureiros. Um
competente e talentoso, e outro, autêntico “picareta” que, contudo, tem
qualidades humanas incríveis. Como a de acreditar, a despeito das evidências,
que seus mirabolantes e inconseqüentes projetos terão êxito. Nós também não
somos um pouquinho assim?
Outro mérito dessa novela de Cassiano Gabus
Mendes, revestida da indispensável leveza requerida pelo horário, é o fato de
não retratar os profissionais dessa área apenas pelo seu já consagrado estereótipo.
Apesar do personagem de Reginaldo Faria apresentar alguns ademanes afeminados,
quando em seu ateliê, no lar é um pai de família como outro qualquer, agindo
normalmente. A história, portanto, não ataca e nem faz apologia de
comportamentos antinaturais. Revela-se apenas uma sátira divertida e bem
humorada, sem descambar para a grosseria.
O gênero, inclusive, já
deixou de ser apenas mania nacional. De “Escrava Isaura” a “Baila comigo”, de
“Dancin days” a “Champagne”, de “Guerra
dos sexos” a “Final feliz”, a novela brasileira jás conquistou 102 países,
entre os quais a China, a Checoslováquia, Cuba, França, Dinamarca, Itália e
tantos outros, de variados regimes, estágios culturais e ideologias. Se ela for
realmente aquilo que dizem que é, ou seja, alienante, desagregadora de famílias
e transmissora de comportamentos nocivos, então o mundo todo está perdido. Como
o leitor vê, é uma tremenda bobagem esse tipo de acusação contra uma das
manifestações culturais mais antigas e mais apreciadas por tanta gente. Tem
crítico que vê fantasmas até debaixo da cama. Isto, talvez, porque eles
estejam, na verdade, dentro de suas cabeças.
(Comentário
publicado na coluna Vídeo, página 20,
editoria de Arte e Variedades do Correio Popular, em 20 de setembro de 1985).
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