Saturday, February 01, 2014

Avaliação sem exagero de um talento exagerado

Pedro J. Bondaczuk

O sétimo escritor (pela ordem de publicação) a ter conto inserido na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, é Deocleciano Martins de Oliveira. Expressado assim, sem a aposição de um qualificativo à frente do seu nome, poucos o reconhecem ou ao menos conhecem. Pelo menos, fora dos limites do seu Estado. Acho isso incompreensível e até inconcebível. Como pode ser considerado “anônimo” um escritor que deixou vasta e variada obra literária, em praticamente todos os gêneros? Pois é. Poucos o conhecem como homem de letras. Pelo menos, na maior parte do País.

Perguntei a seu respeito a um punhado de escritores, de críticos e de jornalistas, e nenhum deles o identificou. Como pode, se Martins de Oliveira conquistou dois prêmios da Academia Brasileira de Letras, um de contos, com o livro “No país das carnaúbas” e outro de romance, com “Os romeiros”? Isso me assusta! Passa-me a impressão de que a permanência de nossa obra independe da sua qualidade. Que está na dependência exclusiva do fortuito, do mero acaso. E, principalmente, que é inútil nosso esforço para legar às gerações futuras algo de sumamente útil e bom, que pode, por uma série de circunstâncias, ser absolutamente ignorado e esquecido e de tudo o que fizemos ter sido em vão.

Bem, as coisas mudam de figura se, em vez de mencionarmos o nome puro e simples de Deocleciano Martins de Oliveira, antecedermos essa menção de um título, digamos, o de Doutor. Sempre aparecerá (como apareceu em minha pesquisa informal) quem se lembre dele como jurista, que de fato foi. E mais, como juiz de Direito no Rio de Janeiro (cargo que também exerceu). Vários conhecem-no, até, porque há dezenas de ruas e praças, país afora, com seu nome. Nesse aspecto, pelo menos não foi esquecido. Foi, todavia, como escritor, que é o que me interessa. Se antes, ainda, de “Doutor”, grafarmos sua condição de Desembargador, mais pessoas ainda se lembrarão dele. Sua atuação na Magistratura foi brilhante e inesquecível.

E nas artes, nada? Bem, na Literatura, seus coestaduanos lembram dele, mas poucos escreveram a seu respeito. São escassas, portanto, as fontes para pesquisa. Todavia, se nos referirmos ao “pintor” Deocleciano Martins de Oliveira, bem mais pessoas, e em várias partes do País, se lembrarão, de imediato, dele. E essa lembrança será mais clara, e bem mais entusiástica, se antes do seu nome colocarmos a função de “escultor”. Eureka! Os amantes de arte de imediato citarão um punhado de suas esculturas em praças, chafarizes e prédios públicos Brasil afora.

Os barreirenses, porém, lembram dele com orgulho e não somente como jurista, mas também como escritor. Não se esquecem, claro, da sua condição de pintor e de escultor. Nem poderiam. Afinal, trata-se do filho mais ilustre de Barra, às margens do Rio São Francisco, onde nasceu em 9 de março de 1906. Suas estátuas moldadas em bronze são testemunhas concretas do seu talento. E não somente em sua cidade natal, mas Nordeste afora, em lugares, por exemplo, como Bom Jesus da Lapa, Três Marias, Paulo Afonso  e Juazeiro, entre outras. Também não só em seu Estado, mas em toda a parte em que passou, como Mato Grosso e Rio de Janeiro. Aliás, na antiga capital da República, no Palácio da Justiça do Estado, há três de suas estátuas, sendo a principal delas a que representa a Justiça, com a balança nas mãos e a venda nos olhos.

Suas esculturas mais citadas pelos historiadores de arte, além das três do Rio de Janeiro, são, todas de bronze: de São Francisco de Assis, São João, do Senhor Ressuscitado,  os bustos do Dr. José Ferreira Muniz, de Dom João Muniz, de vários barões do império e de figuras em chafarizes e praças Bahia afora. E, principalmente, o conjunto que é considerado sua obra-prima em termos de escultura: os doze apóstolos que decoram a entrada da gruta de Bom Jesus da Lapa.

Mas, por que Deocleciano raramente é identificado como escritor, pelo menos fora do seu Estado? Afinal, inaugurou uma tendência no conto, que são as histórias que têm por cenário as margens da bacia do São Francisco, o grande rio de integração nacional. Seus dois mais famosos livros do gênero, “No país das carnaúbas” e “Marujada”, são primorosos. E o que falar dos romances “Caboclo d’água” e “Os romeiros”? E da sua obra ensaística, como “Voz de minha terra” e “É uma voz no silêncio”? E dos seus livros de poemas “Ilha das quimeras” e “Olhos d’água”? E dos vários estudos de arte e de folclore que publicou?

Desconfio que este seja um dos únicos casos em que o Deocleciano Martins de Oliveira ofuscou o Deocleciano Martins de Oliveira. Ou seja, o juiz de direito, o desembargador, o pintor e o escultor fizeram com que o escritor fosse diminuído, se não ofuscado. Isso, a despeito de seu nome ter sido inúmeras vezes mencionado em discursos de diversos acadêmicos da Academia Brasileira de Letras sempre que tratavam dos grandes escritores baianos. E de suas histórias freqüentarem as melhores antologias de contos já publicadas.

Estes “elogios” meus parecem exagerados, mas não são. Estão rigorosamente fundamentados em fatos. Aliás, cabe, aqui, um esclarecimento. Estas análises que faço com freqüência, a propósito de escritores (e já abordei mais de um milhar deles), não são textos de crítica literária. Em “nenhum” dos casos. São meros comentários à margem, sem que me debruce, “tecnicamente”, sobre estilo ou coisa que o valha de nenhum dos autores de que trato.

A crítica, lembro aos que se esqueceram (e informo aos que não sabem), é um gênero de Literatura e dos mais importantes e complexos. Requer profundo conhecimento de quem a exerça e não somente de Literatura. Tem um conjunto de regras que devem ser rigorosamente seguidas. Caso fosse me debruçar, com olhar crítico, sobre as obras dos escritores que tomo por personagens (e aqui me refiro aos considerados “tops de linha”) certamente encontraria falhas, imperfeições e contradições em absolutamente todas as suas obras, por mais consagradas e aparentemente perfeitas que sejam. Afinal, a perfeição nos é interdita a todos e em tudo. Por melhor que seja um livro, sempre pode ser melhorado. E não faço crítica literária até por falta de tempo. Exigiria, de mim, dedicação integral e não raro por anos. Dessa forma, minhas tantas outras atividades ficariam comprometidas, o que não estou disposto a deixar que aconteça. Não deixarei.

Se o leitor considerar exageradas minhas resumidíssimas avaliações sobre a produção de Deocleciano Martins de Oliveira, em suas múltiplas atividades, o que diria disso que dele escreveu Paulo Sardeiro, médico e professor nascido na Bacia do São Francisco, em seu precioso blog “Vapor encantado”? Ele escreveu, a propósito do nosso personagem: “O homem foi um ‘monstro’, uma ‘aberração da natureza’, tudo no bom sentido!”. E, pelo que pude constatar em minhas pesquisas, asseguro que ele não exagerou nem um pouco.


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