Wednesday, February 05, 2014

A primeira feminista de Ilhéus

Pedro J. Bondaczuk

O sucesso ou o fracasso de qualquer pessoa, seja qual for a atividade que exerça, depende muito, talvez até totalmente, das circunstâncias que a cerquem e envolvam. Isso, supondo que tenha competência para fazer o que se propõe. Que seja preparada, aplicada, ativa e determinada e não se intimide (e muito menos desista) dos seus objetivos, quaisquer que sejam os obstáculos que precise transpor. Convenhamos, essa atitude é bastante rara. Se o ambiente em que vive não lhe for propício, se o comportamento social em que estiver inserida se caracterizar pelo preconceito em relação às idéias que tem e que pretende partilhar, essa pessoa pode ter a capacidade que tiver que não chegará a lugar algum. Infelizmente...

Estive, por exemplo, refletindo sobre a trajetória da escritora baiana Elvira Foeppel, tida e havida hoje em dia como uma das maiores ficcionistas baianas e brasileiras de todos os tempos, e a propósito da qual há, relativamente, tão poucas referências, levando em conta sua importância para a Literatura. Os que conhecem a força e a excelência do seu texto, ficam intrigados, sobretudo, com a pequena quantidade de livros que publicou (apenas três), notadamente no que se refere a contos, gênero em que se mostrou tão competente e criativa. Uma das conclusões a que cheguei é que ela surgiu na cena literária baiana e brasileira antes do seu tempo. Pagou preço proibitivo pelo seu pioneirismo.

Ocorre que Elvira foi uma espécie de precursora em seu meio no que diz respeito a comportamento. Foi, conforme escreveu Vanilda Salignac Mazzoni, a “primeira feminista de Ilhéus”. Imaginem as circunstâncias negativas que a cercaram na ocasião em que residia nessa zona cacaueira, comandada por truculentos coronéis! Quem leu, por exemplo, o romance “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, ou assistiu a novela baseada nesse livro em suas duas versões ou viu o filme a respeito pôde constatar como era o comportamento masculino vigente na cidade em questão. Era uma sociedade exclusivamente machista, em que o papel da mulher (pelo menos na cabeça dos manda-chuvas locais) estava definido, sem ambigüidades, e eles o consideravam imutável. No caso de serem “de família”, sua função exclusiva era procriar, criar e educar os filhos, administrar a casa e... submeter-se, sem contestação, às ordens do marido, fossem elas quais fossem. E, se fossem “alegres mariposas”, tinham a tarefa específica de satisfazer as fantasias sexuais (ou taras?) masculinas e nada mais.

Imaginem como reagiria uma sociedade assim, com esse tipo de pensamento (e, sobretudo, de comportamento) caso surgisse em seu meio uma mulher, com semblante estrangeiro, diferente do das pessoas da região, com sobrenome que lhes soasse arrevesado e exótico, altamente instruída e com idéias radicalmente diferentes das que os homens tinham!! No mínimo, causaria profundo impacto. Ainda mais se esse alguém, não contente em agir de forma diferente de “todas” as pessoas de seu sexo de Ilhéus, ainda defendesse que elas tinham direitos absolutamente iguais aos masculinos e que, por isso, deveriam disputar, de igual para igual, o exercício das funções tidas e havidas como exclusivamente deles (entre as quais a Literatura)! Seria, certamente, encarada como uma espécie portadora de alguma doença incurável e altamente contagiosa. Seria segregada por todos, e, por estranho que hoje pareça, principalmente pelas mulheres. Foi o que aconteceu com Elvira.

E olhem que Vanilda Salignac Mazzoni, da Faculdade São Bento da Bahia, sabe o que diz. Afinal, é autora de uma das mais completas e detalhadas biografias da nossa personagem, intitulada: “A violeta grapiuna: vida e obra de Elvira Foeppel”. Ela (como eu, mas com muito mais propriedade), entende que a escritora, sua conterrânea, merece muito maior atenção do que lhe é dada atualmente, por sua importância na Literatura brasileira. Atribui sua não devida valorização a dois fatores: “a) Seus textos tratavam de assuntos referentes ao cotidiano e às questões da mulher no mundo, baseados na filosofia existencialista; b) O formato e o hibridismo de gêneros literários escolhidos por ela não fizeram parte do recorte estético selecionado pelos críticos e historiadores como representação dos anos 1940-1960 no Brasil”.

Essa observação Vanilda expressou em revelador artigo acadêmico, intitulado “A voz dissonante de Ilhéus: Elvira Foeppel”. Bem, nossa rebelde personagem não tinha (e não teve) nenhuma chance de ter suas idéias aceitas na então preconceituosa e machista, “capital cacaueira” da Bahia. Ali, não publicou nenhum livro. Nem poderia. Sua atividade limitou-se a textos publicados no jornal local e assim mesmo em pequena quantidade. Mas, e no Rio de Janeiro, onde desenvolveu toda a carreira literária, cidade para onde se mudou quando tinha 24 anos, por que não se impôs no mundo das letras, não, pelo menos, na proporção do seu imenso talento e potencial? Os motivos, posto que um tanto atenuados, foram os mesmos de Ilhéus.

A então capital federal, apesar de considerada muito mais “cosmopolita” do que a cidade baiana e pretensamente aberta a todas as idéias, não era tão diferente assim no que dizia respeito ao papel da mulher na sociedade. O mundo, aliás, não o era. O movimento feminista na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, dava, ainda, os primeiros passos e sua liderança era ridicularizada na imprensa. E no Brasil? É preciso lembrar? No Rio, havia preconceito, sim, mas dissimulado, disfarçado sob uma polidez apenas de fachada. É certo que várias mulheres já estavam se destacando na Literatura, como Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Nélida Piñon e uma meia dúzia de outras. Elas, no entanto, salvo uma ou outra exceção, não abordavam polêmicos temas exclusivamente femininos, como Elvira fazia, posto que na imprensa. Ainda assim, os três livros da escritora baiana são tão bons, que receberam avaliação positiva (não raro, até entusiástica) da crítica.

Mas ninguém revela, por exemplo, quantas negativas ela teria recebido das editoras, com desculpas cuidadosamente engendradas e engatilhadas, para justificar recusas de publicação de sua obra. Suponho que tenham sido várias. Não se pode esquecer que a primeira mulher a ser admitida na Academia Brasileira de Letras, a cearense Rachel de Queiroz, conseguiu essa “façanha” (algo que deveria ser normal, mas não era) somente em 4 de agosto de 1977. É verdade que conseguiu isso em grande estilo. Obteve, dos acadêmicos, oito votos a mais do que o jurista Pontes de Miranda (o placar foi de 23 a 15 e um em branco) e, assim, assumiu, para escândalo de muitos, a cadeira de número 5. Nessa época, o feminismo já havia se imposto, tanto no mundo, quanto no Brasil, e não era mais tido (ao menos publicamente), como ocorrera por muito tempo, movimento de “histéricas, desocupadas e mal-amadas”. O tema é muito amplo e é provável que eu volte a abordar o assunto.


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