Tema e estilo como
principais obstáculos
Pedro
J. Bondaczuk
A escritora baiana,
Elvira Foeppel, hoje já começa a ser reconhecida como figura importantíssima na
história literária do seu Estado e do País. O fato de ter apenas três livros
publicados, porém, não contribui para que esse reconhecimento seja rápido, pleno e consensual. Os historiadores de
Literatura e os pesquisadores em geral não têm o hábito de recorrer a arquivos
de jornais à cata de textos publicados por determinados escritores. Isso ocorre
ou por desinteresse, ou falta de tempo ou mesmo por dificuldades de acesso a
essas importantes fontes. E Elvira publicou a maior parte da sua produção
literária não em livros, mas em páginas de jornais e revistas, tanto da Bahia,
quanto, e principalmente, do Rio de Janeiro.
Vanilda Salignac
Mazzoni – provavelmente a melhor biógrafa da escritora baiana, nossa personagem
– atribui o não reconhecimento pleno da sua biografada a outros fatores. Entre
estes, destaca o fato dela escrever sobre mulheres, lutando por seus direitos à
igualdade numa época em que esse tipo de idéia era alvo, até, de chacota. Outro
ponto que menciona é a linha filosófica que Elvira adotou em seus textos, a
“existencialista”, de Jean-Paul Sartre, muito contestada na ocasião. E, por fim,
atribui essa espécie de rejeição ao fato dela se desinteressar de participar de
encontros literários, saraus, noites de autógrafos de colegas etc.etc.etc., ou
seja, desses compromissos, mais de caráter social do que propriamente
literário, que, mesmo que nada nos acrescentem, nos mantêm em evidência.
Eu teria muito, ainda,
a escrever sobre essa pioneira do feminismo, mas não o farei, pela escassez de
espaço e por não ser minha proposta esgotar o tema, mas apenas levantar algumas
questões pontuais para sua própria reflexão, paciente leitor. Vanilda esmiúça o
estilo elegante e moderno da nossa personagem – de modernidade muito à frente
do seu tempo, ressalte-se – em um meticuloso artigo acadêmico, intitulado “A
voz dissonante de Ilhéus: Elvira Foeppel”.
A biógrafa em questão
observa em determinado trecho: “A
narrativa de Elvira Foeppel tem um modo muito particular de construção: é o
‘olhar’ a vigiar o mundo. Esse olhar é sempre o da personagem a observar o
olhar do outro – é o ‘olhar’ sob o olhar”. E prossegue em sua análise: “São narradas e descritas personagens que
não vêem saída, que não acreditam em mudanças, que não têm perspectiva de que
algo vá transformar para melhor suas vidas. Na maioria representam mulheres que
não se adaptam à vida doméstica: são esposas desesperançosas por terem maridos
que não lhes dão atenção; mulheres que, após o casamento, tornaram-se apenas
donas-de-casa a esperar seus companheiros à noite com a mesa posta. Ou são mães
que não se realizam com a maternidade, que sentem o evento como um fardo,
contrariando todas as ideologias de que a mulher é incompleta sem filhos –
muitos personagens infantis são crianças aleijadas, doentes, perversas,
famintas – tornando suas mães tristes por não terem o sentimento esperado para
aceitá-las. Também os homens, idealizados por essas mulheres, não são parceiros
amantes ou companheiros, e a realização sexual e a amorosa decepcionam por não
poder encontrar essas qualidades em um único ser (...)”
Para que o leitor tenha
pelo menos pálida ideia da forma de escrever de Elvira Foeppel reproduzo,
abaixo, parte de seu conto “O crime”, com o qual integra a antologia “Histórias
da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para
esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos:
“O
homem sacode as mãos e respira lento.
-Eis
porque é terrível, terrível, terrível – armas do medo, começo de aflição, uma
realidade medida, compassada, o vento enxotando bichos de tamanho grosseiro, já
não se ouve passos no corredor, nem faces suadas, silêncio marcado de nervos, -
‘eu devo insistir e rezar”, – talvez
compreenda o crime, este deliberado, feroz, onde o corpo, incrivelmente branco
explode vermelho, líquido, escorregadio, inerte, – a face marcada pela traição
e o medo, a vítima ali nublada de histórias sórdidas. O corpo não se erguerá
mais à altura de um arbusto pequeno, suas glândulas estão enrijecidas não
inteiramente gastas no ócio. A mão enorme, austera, aparecia inteira como flor
usada, fria. Os cabelos engordurados lambem as orelhas vingadas de sono, um
absurdo cheiro de leite cru toma camadas de ar próximo ao cadáver. Distanciado
da luz está opaco, numa posição casta – olhos calando segredos, pesadamente
desbotados e limpos. No assoalho a toalha de banho lembra afogado em banheira
lisa, mancha felpuda, parada, ele mexe dedos sujos no tecido grosso, deixa
marcas ruins.
O
homem chega à porta e volta, contempla outra vez mais sua vítima – no peito o
buraco monótono, redondo, central onde a bala enodoada, escura, alarga carnes
forçando-as à diluição. Um último riso marca a face lívida, acossada de
surpresa e dúvida, à traição e a coisa ficava aí – nada mais, – o crime fora um
risco de superioridade do destino violentamente obsceno do homem. Seu nome? De
dureza física a sonância fanática e inconsciente sua tradução. Dionísio
DIO-NÍ-SIO. Passadas três horas o corpo ali ainda imóvel, sozinho, o sinal da
descoberta não fora dado, – isto ou aquilo impedira (...)”
Em suma, e recorro, de
novo, a Vanilda, há algumas explicações lógicas para a relativa falta de
reconhecimento à importância dessa escritora tão talentosa e criativa: “Pode-se dizer que estes fatos discutidos
constituem-se nos pontos nevrálgicos na obra de Elvira Foeppel e que motivaram
o seu esquecimento: uma escrita de autoria feminina, o hermetismo de sua
linguagem e o tema filosófico, todos vilões de sua exclusão da historiografia
literária brasileira”. Vivesse hoje, com a mentalidade mais liberal vigente
(posto que muito distante da ideal), provavelmente a sorte de Elvira seria
muito diferente da que foi. Poderia, até, quem sabe, disputar, ombro a ombro,
com sua colega canadense Alice Munro, o Prêmio Nobel de Literatura. Isso,
claro, se alguém se lembrasse de lançar sua candidatura.
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