Pego na curva pela
vocação
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor Herberto
Sales é, hoje em dia (felizmente) um dos autores brasileiros mais estudados em
universidades, e não somente do Nordeste, de onde é originário, mas de todo o
País. Isso dá a exata medida da sua importância para a Literatura nacional,
reconhecida, se não pelo público, pelo menos no âmbito acadêmico. Tenho em
mãos, entre várias outras, duas teses universitárias específicas, tratando de
aspectos particulares de sua copiosa e variada obra literária. Uma é de Andréa
Beatriz Hack, da Universidade Federal da Bahia, intitulada “A religiosidade na
obra do intelectual Herberto Sales”. A outra, é de Ângela Vilma Santos Bispo
Oliveira, da Universidade Federal de Pernambuco. Seu título é: “A poética da
memória: o romance de Herberto Sales”.
Tenho em mãos mais um
punhado de teses acadêmicas a propósito, todas ou de pós-graduação ou de
doutorado em Letras, com uma série de peculiaridades e características desse
inovador das letras nacionais. Não as registro aqui, não por não serem
eventualmente relevantes (todas têm grande relevância), mas pela escassez de
espaço e pela necessidade de me restringir ao essencial nestas análises que, em
momento algum, tiveram e nem têm a pretensão de esgotar o assunto. Aliás, este
é inesgotável.
Embora esta série de
estudos, com base na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de
Janeiro, 1963), se proponha, basicamente, a tratar de alguns dos principais
contistas baianos, Herberto Sales não se dedicou, “apenas” a esse gênero, o
que, se o fizesse, certamente não o desmereceria, dada a qualidade das
histórias curtas que escreveu. Destacou-se, no entanto, e, sobretudo, no
romance. Mas tornou-se, com o passar do tempo, um dos mais festejados e
consagrados autores de literatura infanto-juvenil, desafio para qualquer
escritor e que poucos ousam encarar. Eu não ousaria. Herberto, porém, encarou e
se deu bem.
Escreveu, ainda, (e
publicou, logicamente) livros com descrições de viagens, ensaios e vários
volumes de memórias. Especificamente, como contista, publicou quatro obras do
gênero, a saber: “Histórias ordinárias” (1966), “O Lobisomem e outros contos
folclóricos” (1970), “Uma telha de menos” (1970) e “Armado cavaleiro audaz
motoqueiro” (1980). A maior parte, todavia, da sua extensa e eclética obra
ficcional centralizou-se no romance. E embora seja tido e havido como
ficcionista regional, notadamente da região da Chapada Diamantina,
concentrou-se, notadamente após atingir a maturidade literária, em temas das
mais variadas naturezas e zonas.
O seu premiadíssimo
romance “Além dos Marimbus”, o segundo que publicou, em 1965, trata de temática
diversa da de “Cascalho”, da qual também era “expert”: a exploração de madeira.
Ambos, porém, têm como cenário Andaraí, sua terra natal. Outro ponto em comum
entre os dois enredos é que Herberto conhecia a fundo as duas atividades de que
tratou, uma no primeiro e outra no segundo livro. Tão logo retornou de Salvador
à terra natal, foi, por algum tempo, garimpeiro. Mais tarde, foi comerciante de
madeira. Conhecia a fundo, portanto, reitero, as duas atividades de que tratou.
Ângela Vilma Santos
Bispo Oliveira, também nascida em Andaraí, reproduz, em sua tese, explicações
do próprio Herberto Sales sobre como “nasceu” o seu primeiro e festejado
romance: “Comecei a escrever ‘Cascalho’
certa noite de chuva, à luz de uma vela, em Andaraí, no sobrado de meus pais
(...) E nessa noite eu estava vivendo uma aventura nova, aventura de um
temporal e de uma chuva que eu mesmo estava fazendo, por minha conta, no livro
que começava a escrever, enquanto lá fora um temporal de verdade e uma cheia de
verdade iam encharcando a noite que enchia o meu livro – noite de ‘Cascalho’,
uma história de garimpeiros que eu não sabia onde ia acabar e até onde ia me
levar”.
Mais adiante, Ângela
reproduz a confidência de Herberto sobre o teor do seu romance de estréia: “(...) Foi uma superposição, uma
sedimentação de vivências, de coisas extraordinárias muito ligadas a mim, e
quando em determinado momento eu resolvi escrever o livro, o livro me foi
imposto por esse ‘background’ de experiências. (...) E, naturalmente, aí sim,
levado por uma posição que eu achava que devia assumir, como um escritor em
perspectiva, em relação à comunidade em que eu vivia, à região em que eu nasci,
é que eu tinha necessidade de fazer alguma coisa no sentido de revelar ou de fazer,
como eu fiz no meu livro, um tipo de denúncia social da situação de toda uma
população que vivia em condições extremamente precárias, sob um sistema da mais
incrível exploração do homem pelo homem. Mas isso não significa partir de um
desejo de denunciar para escrever o livro. Não, isso tudo se formou ao longo do
tempo e teve um desfecho natural (...)”.
A ousadia de Herberto
Sales, ao publicar “Cascalho” custou caro ao então jovem escritor. Embora seus
personagens fossem todos fictícios, vários dos poderosos da terra, dos coronéis
com seus bandos de jagunços, vestiram a carapuça e se viram retratados nas
denúncias de crimes das mais diversas naturezas que compunham o cerne do
enredo. E Ângela revela, no seu mencionado ensaio, qual foi a conseqüência para
o neófito (e imprudente?) romancista: “Não
é a toa que, quando da publicação do livro e sua repercussão em Andaraí, o
escritor precisou sair ‘fugido’ para o Rio de Janeiro, em decorrência da reação
negativa das pessoas que se viram focalizadas no romance”. Sua “fuga”
trouxe, evidentemente, vantagens para a Literatura brasileira. Caso não fizesse
isso... certamente seria vítima de alguma tocaia, coisa comum na época naquela
região, que lhe daria fim à vida.
Já em relação aos
madeireiros, tratados no seu segundo livro, tão ou mais realista e denso que o
primeiro, “Além dos Marimbus”, não teve o mesmo problema em relação à ira e à
violência dos conterrâneos. Quando esse romance foi publicado, Herberto Sales
já residia no Rio de Janeiro há pelo menos treze anos.
Encerro estas reflexões
de hoje com o seguinte trecho da brilhante tese de Ângela Vilma Santos Bispo
Oliveira, seguida de uma confidência do nosso personagem, que ela cita em seu
trabalho acadêmico: “O rapaz que até os
dezenove anos nunca havia confessado qualquer interesse pelos livros, e que,
por achar que morreria cedo, se entregou à mais desenfreada boêmia, sonhando um
dia ser tão somente motorista de caminhão, se viu de repente diante de um
chamamento: ‘A minha vocação literária estava esperando por mim na curva do
caminho, dentro de uma macega. Sabia que eu ia passar por ali. Me pegou pela
mão e me disse assim: Pensei que você não viesse mais. E pela mão me levou por
uma vereda cheia de espinhos, de onde eu não podia mais voltar. A minha vocação
literária me pegou numa armadilha. Que fazer? O jeito era ir atrás dela’”.
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