Memorável mestre da
ficção
Pedro
J. Bondaczuk
O conto com o qual
Herberto Sales participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de
Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos sobre
alguns dos principais ficcionistas baianos,
intitula-se “A emboscada”. Certamente é da sua primeira fase literária,
a em que centralizava seus enredos ou especificamente em Andaraí, cidadezinha
em que nasceu, ou em outra localidade qualquer, mas da região da Chapada
Diamantina. Tempos depois, ao atingir a maturidade, tornou-se cosmopolita,
embora jamais tenha renegado suas raízes.
Não tenho nenhuma
informação sobre se esse conto específico consta ou não de algum dos seus
livros do gênero. Se constar, foi incluído depois. Porquanto, a antologia
“Histórias da Bahia” foi publicada em 1963. E nessa época, Herberto Sales havia
publicado, apenas, romances (na verdade três): “Cascalho” (1944), “Além dos
Marimbus” (1961) e “Dados biográficos do finado Marcelino” (1965). Seu primeiro
livro de contos, “Histórias Ordinárias”, foi publicado, apenas, em 1966.
Portanto, veio a público três anos após a publicação de “Histórias da Bahia”.
E como sei que o
cenário de “A emboscada” é a Chapada Diamantina? Simples. Embora Herberto não
cite especificamente a região em momento algum da narrativa, dá diversas
indicações que levam o leitor atento a essa conclusão. Fala, por exemplo, de
“serra” e de “cavernas”, típicas dessa zona baiana. E, como se sabe que ela
foi, durante muito tempo, cenário de todas suas histórias, curtas ou longas, a
conclusão é óbvia. Não exige mais do que mera leitura com a devida atenção.
Convém registrar o que
o jornalista baiano, com atuação nos mais importantes jornais de Salvador
– que se assina, apenas, como Gutenberg
– escreve a propósito do seu ilustre conterrâneo, em um texto bastante
informativo e esclarecedor publicado em seu concorrido blog na internet, em dezembro de 2204 (HTTP://blogdogutemberg.blogspot.com.br):
“Herberto
Sales é um escritor que, muito embora se tenha iniciado no encalço da
literatura do Nordeste, sem trair suas origens, não se contentou com a fórmula
de um garantido sucesso. Ao contrário, aventurou-se na busca de temáticas pouco
usuais no âmbito da literatura brasileira, sem se despreocupar, em
contrapartida, com a manutenção de sua identidade. De ‘Cascalho’ a ‘O fruto do
vosso ventre’, um vasto caminho foi percorrido”.
Em outro trecho, cita esta observação do escritor Ruy Espinheira Filho: “A característica principal da ficção de
Herberto Sales é o mergulho na alma humana. Claro que ele também é mestre em
abordar épocas e ambientes, mas, sem dúvida, seu interesse maior é a nossa
essência”.
O ponto, para mim, mais
esclarecedor do texto de Gutenberg é a parte em que ele escreve: “Critico preocupado em remexer as mínimas
chagas, Herberto Sales jamais se descuidou da construção rigorosa de suas
narrativas, tanto do ponto de vista lingüístico como do estrutural, o que é
atestado pelas constantes reelaborações de seus romances, na busca da melhor
forma de expressão. Enfim, entrega-se com amorosa dedicação às histórias que
conta porque acredita ser esse o seu modo de interferir no andamento do mundo”.
Para que o leitor tenha
pelo menos pálida idéia da forma de narrar de Herberto Sales, reproduzo,
abaixo, o trecho com que ele encerra o conto “A emboscada”, como complemento
destas incompletas, mas bem intencionadas considerações a propósito deste
memorável mestre da ficção:
“(...)
O tropel se fazia ouvir cada vez mais perto, e de repente apareceu no topo do
atalho a cabeça de um cavalo. O velho Patuá conservava-se calmo, ao passo que o
outro dava visível mostra de excitação. À vista da cabeça do cavalo, seus
lábios chegaram mesmo a embranquecer, como se uma atroz sede o tivesse
assaltado.
-
Será ele mesmo? – perguntou.
Foi
quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada descuidado, assobiando. Na sua
fisionomia franca e animada, Guido logo reconheceu o fazendeiro Pedro Neves.
Então, o que havia de incerteza no seu espírito, transformou-se imediatamente
numa sensação de alívio marcada a um só tempo de medo e crueldade. Apontou as
arma, fazendo mira, sempre com o dedo no gatilho. Viu o homem parar de
assobiar, enxugar o suor do rosto com um lenço que de novo guardou no bolso e
acendeu o cigarro.
Foi
quando o velho Patuá ordenou:
-
Fogo!
O
negro procurava fazer um bom alvo na pontaria contra o paletó de brim cáqui
onde havia manchas de suor.
-
Fogo” – repetiu o velho Patuá, num tom de indignação.
E
com o clavinote apontado na direção da nuca do homem, apertou o gatilho. O
negro Guido acompanhou-o. E dois tiros estrondaram ao mesmo tempo que a caverna
se enchia de fumaça. Como se uma invisível mão os enxotasse, os pássaros
voaram. De repente, um desabrido tropel foi ouvido: era o cavalo do fazendeiro
que fugia com os arreios vazios. Espantado, corria doidamente pela serra abaixo
– as caçambas batendo como sinos. Como sinos roucos. Estranhamente roucos”.
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