Monday, February 24, 2014

Colocou a terra natal no mapa

Pedro J. Bondaczuk

O décimo quarto escritor com texto publicado na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, por ordem de publicação, é Jorge Medauar. Esse personagem, dinâmico e realizador, notabilizou-se, sobretudo, como poeta, considerado (com justiça) um dos melhores da sua geração no País. Os quatro primeiros livros que publicou, primores do gênero, foram todos de poemas, a saber: “Chuva sobre a tua semente” (1945), “Morada da paz” (1949), “Prelúdios, noturnos e temas de amor” (1954) e “Às estrelas e aos bichos” (1956). Tenho, em meus arquivos, muitas de suas composições, publicadas em jornais e em revistas literárias.

Confesso que apenas há uns vinte anos “descobri” que Jorge Medauar era, também, refinado contista. E tão bom, que em 1959 conquistou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, nessa categoria, com sua primeira obra no gênero, “Água Preta”, publicada no ano anterior. Nesse mesmo ano, a premiação de romance coube a um seu ilustre conterrâneo (põe ilustre nisso!), Jorge Amado. Parece que, desde então, tomou gosto pela história curta. Tanto isso é verdade que, mesmo residindo em São Paulo – após morar e trabalhar por um bom  tempo no Rio de Janeiro – conquistou, em 1960, outro prêmio importante, este de caráter regional, que foi o Anacleto Alves, comemorativo ao cinqüentenário da cidade de Itabuna. E fez jus à premiação com um novo volume de contos, “A procissão e os porcos”, que havia sido publicado pouco antes pela Livraria Francisco Alves.

Jorge Medauar (como o próprio sobrenome sugere) é descendente de sírios-libaneses. Nasceu em Uruçuca – a antiga Água Preta do Mucambo, sede do então Distrito de Ilhéus – na zona do cacau do Sul da Bahia. Foi, portanto, também um grapiuna, e dos legítimos.   Pode-se dizer, sem medo de errar, que foi ele que praticamente colocou sua cidadezinha natal no mapa literário nacional, ao fazer dela cenário para a maioria dos seus contos. Além dos dois livros que citei, publicou outros dois no gênero: “Histórias de menino” e “O incêndio” (1966, Editora Civilização Brasileira), este último premiado com o Prêmio Governador do Estado, do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Romance, ele publicou um único, “O visgo da terra”, em 1996 (quase na época em que “descobri”, fascinado, seu talento de contista).

Após ler seus contos, entendi a razão de Jorge Medauar ser considerado, além de poeta consagrado nacionalmente, ficcionista de mão cheia, digno de figurar não apenas entre os melhores da Bahia, mas, principalmente, do País. Como a grande maioria dos personagens desta série de estudos, também dedicou-se ao jornalismo, até a sua morte, ocorrida em São Paulo, em 3 de junho de 2003. Porém, sua formação superior, acadêmica, foi em Direito, posto que não me conste que tenha advogado. Se o fez, é detalhe que ignoro. Foi secretário da revista “Literatura” e diretor da sucursal paulista do jornal “O Globo”. Integrou o grupo conhecido como “Geração de 1945”, que forneceu escritores da melhor lavra para a Literatura brasileira.

O conto com que participa da antologia “Histórias da Bahia”, extraído do livro “Água Preta”, tem um título um tanto exótico, “Rê I, RI...Tê A, TA”, ou seja o nome Rita soletrado. Coisa de poeta... Trata-se de narrativa um tanto extensa, da qual reproduzo, apenas, o trecho inicial, para que o leitor tenha pelo menos pálida idéia da sua forma competente e característica de narrar:

“Depois que recebeu o tabefe, na frente de todo mundo, andou meio sumido. Meteu-se na roça: só raramente vinha a Água Preta. Veio uma vez quando precisou ferraduras para os burros. Apeou perto de Pompilho Espinheira, entrou na casa de ferragem, pediu o que queria. Como os cravos não eram dos bons, não levou ferraduras nem cravos. Montou de novo, foi bater noutra freguesia. Explicou bem o que queria.

O caixeiro enrolava o embrulho com moleza, menos por preguiça do que por vontade de ver a cara que fora batida, no meio da Praça, pelo coronel Juvenal. Enquanto fazia o serviço levantava os olhos. Mas baixava-os de novo, ao baterem nos de Manecão – uns olhos que pareciam molhados, faiscavam, impedindo demora em riba deles. Manecão sabendo que o caixeiro preguiçava mode lhe examinar. Por isso, numa hora, diante da sonsice, abriu a boca, quase num berro:
- Me despache logo, seu... Enrole essa merda e me diga quanto le devo.

O caixeiro tremeu, sacudido no seu intento. Ao dizer o preço, a voz escapuliu sufocada pelo fundo da garganta.

Manecão foi direto à montaria, amarrada no argolão da porta. Suspendeu o corpo pesado, escanchou as pernas por cima da sela. Catucou a barriga do animal. Sem olhar para trás uma só vez, atravessou a cidade: sumiu na estrada.

A outra vez que voltou, foi quase à noitinha. Cruzou a cidade, parou no bar de Maçu. Havia uns fedelhos no bilhar. Para um canto, o intendente pegava uma partida de damas com Tibério. Maçu entrava dos fundos, abotoando a braguilha. Disse alto, para o intendente ouvir:
- Enquanto Água Preta não tiver esgoto, essa catinga...

Ia continuar, fazendo carga na falta de esgoto. Essa era uma de suas campanhas. Principalmente porque dos fundos subia um fedor insuportável. Até os beijos pareciam recolher o cheiro forte que o vento trazia da latrina descoberta. Moscas e varejeiras fervilhavam, aperreando o dia todo. Mas quando Maçu viu Manecão, fez silêncio, engolindo o que ia dizer. Os rapazes do bilhar, o intendente, Tibério – todos interromperam por um instante a jogada. Arregalaram os olhos. Manecão sabendo que sua presença na terra era um incômodo. Uma surpresa de bater o coração. Decerto – pensou – assim que botasse o pé na porta, comentariam pelas costas.

Continuou encostado, as pernas cruzadas. As botas – com esporas de rosetas graúdas – borradas de lama seca.

Sem dizer uma palavra, Maçu botou em sua frente um cálice de licor de jenipapo. Manecão emborcou até o meio, descansou o cálice de novo no balcão. Depois andou até a porta, cuspiu no passeio, voltou. Aí Maçu rompeu o silêncio:
- Não está do seu agrado, seu Manecão? Vosmecê deseja outro?

Não respondeu. Mas olhou para trás, espiando os que jogavam, como se lançasse um desafio: era ele mesmo, de carne e osso – o mesmo que tomara um tabefe na cara, sim senhores! Estava na terra para quem quisesse ver, para quem quisesse arengar.

Assim que riscaram o olhar no dele, disfarçaram, voltaram às partidas. Havia pelo ar qualquer coisa que poderia explodir, provocar uma tragédia. Um silêncio de finados. Só as batidas das bolas no bilhar, o zunir das varejeiras. Mas Manecão já estava para ir embora, pois a mão grossa afundara no bolso, voltando com um bolo de dinheiro. Pagou. Raspou o troco. Um alívio para todos. Tornou a montar, foi descendo o beco que desembocava na rua do Gás (...)”.


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