Para prevenir
redundâncias
Pedro
J. Bondaczuk
O décimo terceiro
contista presente na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de
Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos sobre
alguns dos principais ficcionistas baianos, por ordem de publicação, é,
disparado, o mais famoso, reverenciado e bem sucedido de todos os escritores
cujos textos integram este livro. É, sem exagero algum, mito literário,
consagrado e incontestado no Brasil e no Exterior. Refiro-me a Jorge Amado.
Paradoxalmente, será o personagem sobre o qual menos escreverei nesta sucessão
de comentários temáticos, com tema específico e dirigido, no caso, a ficção
regional ou, para ser mais exato, 23 dos maiores contistas baianos. .
Asseguro-lhes, todavia,
que tomei essa decisão não por eventualmente desconsiderar essa figura
maiúscula e não reconhecer, por algum motivo, sua avassaladora importância para
a ficção regional. Longe disso! Jorge Amado éÉ importante, sim, e sempre será,
e mais do que isso, é essencial não apenas para a Literatura de seu Estado ou mesmo
do País, mas do mundo. Porquanto trata-se do escritor brasileiro mais
conhecido, estudado e aplaudido Planeta
afora, cuja venda de livros só foi superada, em quantidade de exemplares, e em
tempos relativamente recentes, por este fenômeno editorial que é Paulo Coelho.
Eu não seria tolo, pois, de sequer insinuar, mesmo que por remota e sutil (ou
desastrada) sugestão, que ele não merece o status que conquistou com seu
incomparável talento.
Então, por que tratarei
dele e de sua carreira literária sem a mesma atenção que dispensei (e que ainda
vou dispensar) aos demais integrantes da antologia que tomei como referência?
Simples, porque ele é, provavelmente, a personalidade das letras sobre a qual
mais escrevi nos últimos anos. No ano passado, por exemplo, mais
especificamente em agosto de 2012, quando do centenário do seu nascimento,
abordei os detalhes essenciais de sua vida e carreira. E já não pude, naquela
oportunidade. trazer nenhuma informação nova que milhares e milhares de pessoas
que escreveram sobre ele já não tivessem dado. Antes, quando da sua morte
(coincidentemente, ocorrida também em um mês de agosto, o mesmo do seu
nascimento, mas de 2001), eu já havia tratado do mesmíssimo tema, com uma ou
outra novidade, mas apenas incidental e nas entrelinhas. Ainda recentemente,
coisa de poucas semanas, voltei a escrever sobre Jorge Amado, ao comentar um
dos seus tantos e memoráveis romances, no caso “Farda, fardão, camisola de
dormir”.
Portanto, tudo o que eu
eventualmente pudesse trazer à baila, seria repetitivo e redundante. E já nem
digo em relação ao que milhares e milhares escreveram sobre ele, mas ao que eu
próprio escrevi. Não passaria, por conseguinte, de mera variação em torno do
mesmíssimo tema. Seria, reitero, redundância, que resolvi evitar. Como esta série de estudos já está quatro
vezes mais extensa do que foi originalmente planejada, optei por “economizar”
espaço. Ou seja, decidi, em vez de repetir o que é sobejamente conhecido,
abordar, com maior extensão e vagar, ficcionistas menos lembrados, ou, dizendo
com maior clareza, que foram (injustamente) esquecidos, não raro até (ou
principalmente) por seus conterrâneos, quando não por seus parentes.
Não irei, porém,
privá-los da maravilhosa produção, no caso em contos, de Jorge Amado. Partilho,
pois, com vocês, o trecho abaixo, com que esse mestre universal da ficção
encerra seu conto “De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto”, que
abrilhanta e enaltece ainda mais a excelente antologia “Histórias da Bahia”,
texto ficcional extraído pelos organizadores da referida coletânea da revista
“Senhor”:.
“(...)
Por esse tempo o mulato Porciúcula abusou de esperar. Cansado de bancar besta,
andando de dedo agarrado, ouvindo conversa na beira do mar. Todo homem tem seu
orgulho, ele viu que era sem jeito, era muito esperar, não estava para morrer
de xodó que é a morte pior de todas. Se voltou para Carolina, mulatona de peso
que vivia lhe arrastando a asa. De Maria do Véu se curou com umas cachaças e
com as risadas de Carolina. Nunca mais quis conversa.
Naquele
pedaço, Porciúncula pediu mais cachaça, no que foi atendido. Alonso dava a vida
por um caso bem contado e o caso estava chegando quase ao fim. O fim foi
naquela gripe de uns anos atrás que baqueou meio mundo. Maria do Véu caiu com
febre, era fraquinha, não durou quatro dias. Porciúncula só soube da notícia
com ela já morta. Ele andava arredio, negócio de umas perseguições que lhe
fizeram por causa de um tal Gomes, barraqueiro em Águas dos Meninos, doido por
um jogo de bisca. Ora, cortar baralho com Porciúncula era jogar dinheiro fora.
Mas ele jogou porque quis, fez mal em se queixar depois.
Estava
Porciúncula deixando amainar o temporal quando o recado de Tibéria o alcançou,
pedindo pressa. Maria estava chamando de urgência. Quando ele chegou, ela tinha
morrido na horinha mesmo. Tibéria explicou o pedido feito na agonia da morte.
Ela queria ser enterrada de vestido de noiva, com véu e grinalda. O noivo,
dissera, era o mulato Porciúncula, estavam para se casar.
Era
um pedido mais doido mas era pedido de morto, não tinha remédio senão
satisfazer. Porciúncula perguntou como ia arranjar um vestido de noiva, compra
custosa e o comércio de noite fechado. Achava difícil, mas não foi. Pois não é
que o mulherio todo do castelo e da rua, cambada de bruacas, tudo puta velha
cansada da vida, não era que estavam virando costureiras, cosendo vestido de
véu e grinalda? Num instante se juntou dinheiro pra comprar flores, pano
arranjaram, renda não sei onde, arranjaram sapato, meia de seda, luva branca,
até luva branca” Uma cosia um pedaço, outra pregava uma fita.
Porciúncula
disse que nunca viu um vestido de noiva igual àquele, de tão bonito e de luxo,
e ele sabia o que estava dizendo pois nos tempos do seu xodó com Maria andou
espiando muito casamento, já vivia enjoado de tanto ver vestido de noiva.
Depois
vestiram Maria, o rabo do vestido saía da cama, rolava no chão. Tibéria veio
com um buquê e pôs nas mãos de Maria. Noiva tão linda nunca houvera, tão serena
e doce, tão feliz na hora de casar.
Agora,
junto da cama, sentou-se Porciúncula, era o noivo, tomou da mão de Maria.
Clarice, uma que tinha sido casada e o marido a largou com três filhos para
criar, tirou, chorando, a aliança do dedo, recordação dos bons tempos, entregou
ao mulato. Porciúncula, devagarinho, colocou-a no dedo da morta, e olhou o seu
rosto. Maria do Véu estava sorrindo. Antes não sei, naquela hora estava
sorrindo, assim contou Porciúncula garantindo ademais que não estava bêbado
naquele dia, nem tinha tocado em cachaça. Tirou os olhos do rosto tão lindo,
espiou pra Tibéria. E jura que viu, viu de verdade, Tibéria virada em padre,
envergando aquelas vestimentas todas de abençoar casamento, com coroa e tudo,
um padre gordo, com jeito de santo. Alonso encheu os copos novamente, nós
emborcamos.
Por
aí parou o mulato Porciúncula, não houve jeito de lhe arrancar nem mais uma
palavra da história. Já tinha descarregado em cima de nós seu defunto, tinha se
aliviado do fardo. Mercedes quis ainda saber se o caixão tinha sido branco, de
donzela, ou preto, de pecador. Porciúncula somente suspendeu os ombros e
enxotou as moscas. Sobre Teresa Batista, a aposta que ela ganhou e a vida nova
começada nada disse. Também ninguém perguntou. Por isso não posso contar, não
sou de falar do que não conheço bem conhecido. O que posso fazer é contar a
história do Gringo, pois essa conheço como todo mundo no cais. Se bem que não
seja história para cachaça medida como esta, com o perdão dos distintos. É
história para cachaça comprida, de noite de chuva, ou melhor, para uma viagem
de saveiro em noite de lua. Ainda assim, se quiserem, posso contar, não vejo
inconveniente”
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk.
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