Sunday, February 23, 2014

Para prevenir redundâncias

Pedro J. Bondaczuk

O décimo terceiro contista presente na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, por ordem de publicação, é, disparado, o mais famoso, reverenciado e bem sucedido de todos os escritores cujos textos integram este livro. É, sem exagero algum, mito literário, consagrado e incontestado no Brasil e no Exterior. Refiro-me a Jorge Amado. Paradoxalmente, será o personagem sobre o qual menos escreverei nesta sucessão de comentários temáticos, com tema específico e dirigido, no caso, a ficção regional ou, para ser mais exato, 23 dos maiores contistas baianos. .

Asseguro-lhes, todavia, que tomei essa decisão não por eventualmente desconsiderar essa figura maiúscula e não reconhecer, por algum motivo, sua avassaladora importância para a ficção regional. Longe disso! Jorge Amado éÉ importante, sim, e sempre será, e mais do que isso, é essencial não apenas para a Literatura de seu Estado ou mesmo do País, mas do mundo. Porquanto trata-se do escritor brasileiro mais conhecido, estudado e aplaudido  Planeta afora, cuja venda de livros só foi superada, em quantidade de exemplares, e em tempos relativamente recentes, por este fenômeno editorial que é Paulo Coelho. Eu não seria tolo, pois, de sequer insinuar, mesmo que por remota e sutil (ou desastrada) sugestão, que ele não merece o status que conquistou com seu incomparável talento.

Então, por que tratarei dele e de sua carreira literária sem a mesma atenção que dispensei (e que ainda vou dispensar) aos demais integrantes da antologia que tomei como referência? Simples, porque ele é, provavelmente, a personalidade das letras sobre a qual mais escrevi nos últimos anos. No ano passado, por exemplo, mais especificamente em agosto de 2012, quando do centenário do seu nascimento, abordei os detalhes essenciais de sua vida e carreira. E já não pude, naquela oportunidade. trazer nenhuma informação nova que milhares e milhares de pessoas que escreveram sobre ele já não tivessem dado. Antes, quando da sua morte (coincidentemente, ocorrida também em um mês de agosto, o mesmo do seu nascimento, mas de 2001), eu já havia tratado do mesmíssimo tema, com uma ou outra novidade, mas apenas incidental e nas entrelinhas. Ainda recentemente, coisa de poucas semanas, voltei a escrever sobre Jorge Amado, ao comentar um dos seus tantos e memoráveis romances, no caso “Farda, fardão, camisola de dormir”.

Portanto, tudo o que eu eventualmente pudesse trazer à baila, seria repetitivo e redundante. E já nem digo em relação ao que milhares e milhares escreveram sobre ele, mas ao que eu próprio escrevi. Não passaria, por conseguinte, de mera variação em torno do mesmíssimo tema. Seria, reitero, redundância, que resolvi evitar.  Como esta série de estudos já está quatro vezes mais extensa do que foi originalmente planejada, optei por “economizar” espaço. Ou seja, decidi, em vez de repetir o que é sobejamente conhecido, abordar, com maior extensão e vagar, ficcionistas menos lembrados, ou, dizendo com maior clareza, que foram (injustamente) esquecidos, não raro até (ou principalmente) por seus conterrâneos, quando não por seus parentes.

Não irei, porém, privá-los da maravilhosa produção, no caso em contos, de Jorge Amado. Partilho, pois, com vocês, o trecho abaixo, com que esse mestre universal da ficção encerra seu conto “De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto”, que abrilhanta e enaltece ainda mais a excelente antologia “Histórias da Bahia”, texto ficcional extraído pelos organizadores da referida coletânea da revista “Senhor”:.

“(...) Por esse tempo o mulato Porciúcula abusou de esperar. Cansado de bancar besta, andando de dedo agarrado, ouvindo conversa na beira do mar. Todo homem tem seu orgulho, ele viu que era sem jeito, era muito esperar, não estava para morrer de xodó que é a morte pior de todas. Se voltou para Carolina, mulatona de peso que vivia lhe arrastando a asa. De Maria do Véu se curou com umas cachaças e com as risadas de Carolina. Nunca mais quis conversa.

Naquele pedaço, Porciúncula pediu mais cachaça, no que foi atendido. Alonso dava a vida por um caso bem contado e o caso estava chegando quase ao fim. O fim foi naquela gripe de uns anos atrás que baqueou meio mundo. Maria do Véu caiu com febre, era fraquinha, não durou quatro dias. Porciúncula só soube da notícia com ela já morta. Ele andava arredio, negócio de umas perseguições que lhe fizeram por causa de um tal Gomes, barraqueiro em Águas dos Meninos, doido por um jogo de bisca. Ora, cortar baralho com Porciúncula era jogar dinheiro fora. Mas ele jogou porque quis, fez mal em se queixar depois.

Estava Porciúncula deixando amainar o temporal quando o recado de Tibéria o alcançou, pedindo pressa. Maria estava chamando de urgência. Quando ele chegou, ela tinha morrido na horinha mesmo. Tibéria explicou o pedido feito na agonia da morte. Ela queria ser enterrada de vestido de noiva, com véu e grinalda. O noivo, dissera, era o mulato Porciúncula, estavam para se casar.

Era um pedido mais doido mas era pedido de morto, não tinha remédio senão satisfazer. Porciúncula perguntou como ia arranjar um vestido de noiva, compra custosa e o comércio de noite fechado. Achava difícil, mas não foi. Pois não é que o mulherio todo do castelo e da rua, cambada de bruacas, tudo puta velha cansada da vida, não era que estavam virando costureiras, cosendo vestido de véu e grinalda? Num instante se juntou dinheiro pra comprar flores, pano arranjaram, renda não sei onde, arranjaram sapato, meia de seda, luva branca, até luva branca” Uma cosia um pedaço, outra pregava uma fita.

Porciúncula disse que nunca viu um vestido de noiva igual àquele, de tão bonito e de luxo, e ele sabia o que estava dizendo pois nos tempos do seu xodó com Maria andou espiando muito casamento, já vivia enjoado de tanto ver vestido de noiva.

Depois vestiram Maria, o rabo do vestido saía da cama, rolava no chão. Tibéria veio com um buquê e pôs nas mãos de Maria. Noiva tão linda nunca houvera, tão serena e doce, tão feliz na hora de casar.

Agora, junto da cama, sentou-se Porciúncula, era o noivo, tomou da mão de Maria. Clarice, uma que tinha sido casada e o marido a largou com três filhos para criar, tirou, chorando, a aliança do dedo, recordação dos bons tempos, entregou ao mulato. Porciúncula, devagarinho, colocou-a no dedo da morta, e olhou o seu rosto. Maria do Véu estava sorrindo. Antes não sei, naquela hora estava sorrindo, assim contou Porciúncula garantindo ademais que não estava bêbado naquele dia, nem tinha tocado em cachaça. Tirou os olhos do rosto tão lindo, espiou pra Tibéria. E jura que viu, viu de verdade, Tibéria virada em padre, envergando aquelas vestimentas todas de abençoar casamento, com coroa e tudo, um padre gordo, com jeito de santo. Alonso encheu os copos novamente, nós emborcamos.


Por aí parou o mulato Porciúncula, não houve jeito de lhe arrancar nem mais uma palavra da história. Já tinha descarregado em cima de nós seu defunto, tinha se aliviado do fardo. Mercedes quis ainda saber se o caixão tinha sido branco, de donzela, ou preto, de pecador. Porciúncula somente suspendeu os ombros e enxotou as moscas. Sobre Teresa Batista, a aposta que ela ganhou e a vida nova começada nada disse. Também ninguém perguntou. Por isso não posso contar, não sou de falar do que não conheço bem conhecido. O que posso fazer é contar a história do Gringo, pois essa conheço como todo mundo no cais. Se bem que não seja história para cachaça medida como esta, com o perdão dos distintos. É história para cachaça comprida, de noite de chuva, ou melhor, para uma viagem de saveiro em noite de lua. Ainda assim, se quiserem, posso contar, não vejo inconveniente”

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk.

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