Diamante entre
cascalhos
Pedro
J. Bondaczuk
O nosso décimo
“personagem”, nesta série de estudos de alguns dos principais ficcionistas
baianos, com base na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio
de Janeiro, 1963), Herberto de Azevedo Sales, nasceu em Andaraí, em 21 de
setembro de 1917. Trata-se de antiga cidade mineradora, da Chapada Diamantina,
em que a principal atividade era (e creio que ainda seja) o garimpo de
diamantes. Era um ambiente violento, como dá para o leitor imaginar, com gente
de todos os tipos, muitos, até, foragidos da justiça, aventureiros em busca de
um golpe de sorte que lhes proporcionasse súbita fortuna.
Em um universo assim,
brotam, espontaneamente até, histórias e mais histórias, de crimes, de todos os
tipos de exploração, de vícios e de prostituição, à espera, apenas, de uma pena
competente que as registre e perpetue. E Herberto foi o narrador por excelência
desses dramas, comédias e tragédias, tendo por personagens todo o tipo de
pessoas: garimpeiros, oportunistas dispostos a se apropriar do eventual (e
raro) sucesso deles, coronéis, prostitutas, capangas e vai por aí afora. Não
tardou para se tornar expoente de uma das vertentes da literatura ficcional
regional, a do garimpo, ao lado de outras tantas, como a dos grapiunas – que
tinham a zona cacaueira como cenário –, dos ribeirinhos do Rio São Francisco,
dos contistas urbanos cujo palco era a capital baiana, essa fascinante
metrópole de intensa variedade cultural, e vai por aí afora. Foi ali que
encontrou (na verdade, construiu) precioso e raro diamante entre cascalhos.
Mas... na sequência o leitor entenderá essa minha “criptográfica” observação.
Caso se contentasse com
o papel de ficcionista regional, Herberto Sales, certamente, já inscreveria seu
nome na Literatura brasileira com grande destaque. Ocorre que ele não se
contentou “apenas” com isso. Queria ir além, muito além de ser “só” um autor
com enredos de um único tema. Aventurou-se por inúmeros outros, muitos
inexplorados por qualquer outro escritor, não importa de onde fosse. E... se
deu bem. Correu riscos, mas teve sucesso. Explorou com perícia, argúcia e
sensibilidade todo assunto que você possa imaginar. Fez do ecletismo sua marca
registrada. Buscou (e conseguiu) chegar ao cerne da alma humana, á cata do que
move as pessoas em suas condutas, quer para o bem, quer para o mal.
Quando moço, todavia,
sequer passava pela cabeça de Herberto Sales ser escritor e muito menos, claro,
ascender ao estrelato das letras. Começou a interessar-se, de fato, por Literatura,
após abandonar os estudos, na quinta série do então ginasial, feito em Salvador
e regressar a Andaraí. Isso, em 1939, quando já estava com 22 anos de idade. E
esse interesse nem mesmo foi na qualidade de escritor, mas de leitor.
Encantou-se pela obra de Eça de Queiroz (por coincidência, no meu caso, também
passei a flertar com as letras após a leitura desse autor português). Do autor
de “Primo Basílio” passou à leitura dos ficcionistas nordestinos.
É possível que nessa
ocasião já ensaiasse os primeiros textos, mas não posso afirmar isso, por não
contar com nenhuma referência a propósito. Por essa época, Herberto procurava,
isto sim, “seu lugar” na vida. Trabalhou como comerciante, em negócios com
madeira, mas fixou-se mesmo, e por um tempo razoável, como funcionário de
cartório. Seu primeiro livro foi publicado no Rio de Janeiro. O autor era muito
jovem: tinha 27 anos de idade. Foi lançado em 1944. E tratou-se, de cara, de um
romance. E que romance! “Cascalho” é uma obra tão boa, em todo e qualquer sentido
em que se queira analisá-la, que afirmo, sem nenhum temor de equívoco ou de
exagero, que se trata, hoje, de um clássico da Literatura Brasileira de todos
os tempos.
E não estou só nessa
opinião. Carlos Heitor Cony, que o sucedeu na Academia Brasileira de Letras,
assim se referiu às circunstâncias que permitiram que essa obra-prima viesse à
luz (pois correu sérios riscos de não vir):
"Publicado
em 1944, quando Herberto Sales tinha 27 anos, "Cascalho" é o imenso
romance que logo se colocou ao lado das grandes obras do nosso ciclo
nordestino, iniciado com José Américo de Almeida e prolongado por Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.
Morando em Andaraí, na região da Chapada Diamantina, Herberto
correspondia-se com Marques
Rebelo, mas nunca comunicou-lhe que
estava escrevendo um romance. Com mais de 650 páginas, enviou o livro a um
concurso coordenado pela ‘Revista do Brasil’, da qual Aurélio Buarque de Holanda era secretário. Na obsessão de catar regionalismos, Aurélio examinou o
original e surpreendeu-se com a qualidade do texto. Sendo vizinho de Marques
Rebelo, com ele comentou a obra que estava lendo. Ficou admirado ao saber que o
autor de ‘Marafa’ correspondia-se com o autor.
Herberto decidira encerrar a carreira literária que sequer começara.
Juntara gravetos no quintal da casa de sua família, rasgara em quatro partes as
650 páginas da cópia que lhe restara. Queimara tudo. Aurélio sabia que o
original enviado ao concurso seria jogado fora e decidiu ficar com ele, a fim
de catar os vocábulos regionais que mais tarde enriqueceriam seu dicionário.
Quando Herberto escreveu a Rebelo, comunicando-lhe que queimara a cópia
única do livro, foi surpreendido com a revelação de que o original continuava
com Aurélio. Não foi difícil encontrar uma brecha no mercado editorial da época".
O escritor,
observo, nunca tem certeza da excelência da obra que produziu, mesmo que se trate
do máximo dos máximos. Sempre paira em seu espírito alguma dúvida, mesmo
quando, ou se, ela obtém a consagração pública. Essa incerteza, e mais, esse
temor do ridículo é que levaram Herberto Sales a queimar os originais do seu
primeiro romance. Ainda bem que mestre Aurélio prestou mais esse serviço à
Literatura, entre tantos e tantos outros. Preservou essa joia rara, esse
diamante garimpado entre cascalhos, da destruição.
Reproduzo,
abaixo, um pequeno trecho do livro (e
lembro que é um romance de 650 páginas), que colhi na enciclopédia eletrônica
Wikipédia, junto com o trecho em que Cony revela as circunstâncias em que essa
obra-prima pôde vir a público:
"Sente-se
apanhado irrevogavelmente na armadilha: ia morrer como um bicho - sem vela nem
sentinela - e esse pormenor lhe causava uma espécie de decepção. Por mal dos
pecados, sua candeia apagara-se: mais pelo instinto que por outra coisa,
avançava através da escuridão do lapeiro. Evidentemente, os outros gruneiros
tinham fugido com muita rapidez ao ser dado o alarma, pois, do contrário,
também estariam lutando ali para não morrer: isso lhe parecia de certo modo
injusto. Enterra os pés na areia, para dar impulso ao corpo. Tem vontade de
gritar, mas não o faz, por considerar essa idéia totalmente inútil: no bojo da
gruna outra coisa não se ouve que não seja o rumor da água".
Se você não
ainda não leu “Cascalho”, caro leitor, faça uma forcinha. Consiga um exemplar e
leia-o, de capa a capa, com a maior atenção e empenho. Será, para você (assim
como foi para mim) uma inesquecível revelação literária, esteja certo. Com a
publicação do romance, louvado pela crítica e respeitado por seus pares, e
antes de sequer completar trinta anos de idade, Herberto Sales, que nem
cogitava em se tornar escritor antes do lançamento desse livro, mudou-se, de
vez, para o Rio de Janeiro. Mas... para exercer o jornalismo (sempre ele!).
Esta, todavia, é outra história, que fica para outra vez.
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