Providencial ação do
acaso
Pedro
J. Bondaczuk
O acaso tende a
determinar, sem nenhum aviso – até porque, se “avisasse, óbvio, não mereceria
essa designação, ou seja, não teria o caráter de casual, de fortuito, de
imprevisível – nosso sucesso ou fracasso, seja lá no que for. Tanto pode ser na
conquista, ou perda, de posição de destaque em determinada atividade
profissional, acadêmica ou artística. quanto no início ou fim de algum nada
promissor e potencialmente complicado relacionamento amoroso, entre outras,
talvez infinitas, possibilidades. Na vida literária sua influência não é menor
e nem menos decisiva.
Tomo como exemplo dois
casos envolvendo o mesmo escritor: Herberto de Azevedo Sales, décimo personagem
desta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, com
base na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro,
1963). Um deles refere-se à influência que recebeu quando ainda cursava o
ginasial, em Salvador, em sua adolescência. O outro, foi a forma como seu romance
de estréia, “Cascalho”, foi salvo da destruição, depois do autor ter ateado
fogo na única cópia que havia feito, acreditando que os originais estivessem
perdidos. Sem essas duas circunstâncias, é possível que ele jamais chegasse
onde chegou, nunca conquistasse o estrelato no campo das letras e não passasse
de cidadão comum, anônimo, como nós, conhecido, apenas, em um círculo restrito
de parentes e de amigos.
A influência recebida
foi a do Padre Cabral, que tem que ser sempre lembrado, e reverenciado, por
haver influenciado vários outros promissores estudantes que viriam a se tornar,
anos depois, nomes famosos no mundo das letras, como Anísio Teixeira, Flávio
Neves e, principalmente, Jorge Amado. Via de regra, esses “garimpeiros de
vocações”, esses professores que agem, como esse jesuíta agiu – (e não somente
com as pessoas que citei, mas com vários e vários outros estudantes, menos
famosos, ou que sequer atingiram a fama, mas que tiveram o prazer de terem seus
talentos reconhecidos), são esquecidos com o tempo pelos beneficiados. Além de
garimparem, eles também lapidam esses diamantes brutos. Reconhecimento,
porém... é algo com que não contam. Infelizmente. São ossos do seu ofício
(diria, do seu sacerdócio).
Padre Amaro, que
lecionava no Colégio Antonio Vieira, de Salvador, vislumbrou potencial
literário nas redações escolares de Herberto Sales. E embora este, na época,
sequer cogitasse em se tornar escritor, uma sementinha deve ter permanecido no
seu cérebro. E, no devido tempo, ela desenvolveu-se e se transformou em
saudável e frondosa árvore. Poucos valorizam essa influência. Eu, porém,
valorizo muito, pois contei com o apoio de mestres assim, entre os quais
destaco o professor Moisés Prates.
O que aconteceu, em
relação ao romance de estréia de Herberto Sales, “Cascalho”, uma obra-prima,
modelo no gênero hoje e sempre, foi muito mais incrível e “miraculoso”. O então
jovem “projeto de escritor” redigiu, com entusiasmo, mas com a insegurança dos
que trilham determinado caminho pela primeira vez, 650 páginas de uma história
densa, original, realística e profundamente humana. Decidiu enviar o romance
(um calhamaço daqueles, convenhamos) para um concurso literário promovido pela
“Revista do Brasil”, do Rio de Janeiro, que tinha como secretário ninguém menos
que Aurélio Buarque de Holanda. Herberto fez uma única cópia (em papel carbono)
do livro.
Como não fosse
classificado entre os finalistas – por uma razão qualquer, provavelmente pela
extensão da obra – concluiu que havia se
enganado quanto à própria vocação literária. Quanto a isso, nunca temos
absoluta certeza. Herberto também não tinha. Decepcionado e talvez até
envergonhado por haver se exposto daquela maneira, rasgou em quatro pedaços a
cópia que tinha em seu poder, que acreditava ser a única, pois presumiu que os
promotores do concurso haviam dado fim aos originais, e pôs fogo naquela
papelama. “Pronto! Não pensarei mais em ser escritor”, concluiu. Porém... aí
entrou a interferência do acaso.
Aurélio Buarque de
Holanda, “vidrado” em tudo o que fosse referente a regionalismo, resolveu ficar
com os originais de “Cascalho”. Até aí, tudo bem. Eu mesmo guardo, entre a
minha volumosa papelada, alguns livros nunca publicados e esquecidos, quando
não renegados, por seus autores. Com o tempo, esse material, aparentemente sem
serventia, transforma-se em mera curiosidade, e olhem lá. Não raro, em certo
dia, nos desfazemos dele, até para poupar espaço. Ocorre que Aurélio comentou o
romance que tinha em mãos com Marques Rebelo, de quem era vizinho. Teceu entusiásticos
e rasgados elogios ao volumosíssimo calhamaço, que lera e relera várias vezes e
a cada leitura descobrira coisas novas e surpreendentes. Falou do estilo, das
descrições, dos personagens, do ambiente, do enredo, da forma de narrar, de
tudo, enfim. E, com isso, interessou o interlocutor, que quis saber quem era o
autor daquele texto que entusiasmara tanto seu via de regra rigoroso e discreto
amigo.
E aí... o acaso atuou
de novo. E com inusitada intensidade. Ocorre que Marques Rebelo mantinha
correspondência regular com Herberto Sales, não se sabe por qual motivo, que
não importa. Por isso, resolveu relatar ao jovem correspondente a conversa que
teve com mestre Aurélio. Em resumo, convenceu o autor que o romance era muito
bom, “mexeu os pauzinhos”, encontrou editora disposta a publicá-lo, e, desta
forma, a Literatura brasileira ganhou um dos seus maiores clássicos de todos os
tempos. O livro emplacou, caiu como uma bomba nos meios literários, embeveceu
críticos, agradou leitores, esgotou várias edições e fundamentou uma das mais
brilhantes e inquestionáveis carreiras de que se tem notícia. Agora,
respondam-me: foi ou não foi providencial a interferência do acaso?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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