Escritor seminal
Pedro
J. Bondaczuk
O ficcionista baiano
Deocleciano Martins de Oliveira tem papel dos mais importantes na Literatura
brasileira, sobretudo na de caráter regional. É tido e havido como um dos
precursores da chamada “vertente do Rio São Francisco” na ficção, enfocando
coisas e gentes que viviam (e vivem) às margens desse importante curso d’água,
que nasce e “morre” em território nacional e cuja transposição para áreas
áridas do Nordeste gera esperanças e polêmicas (mais estas do que aquelas) .
Não se pode afirmar que tenha sido o precursor dessa corrente. Mas foi, sem
dúvida, seu mais ilustre representante.
Inspirados por ele (e
nesse aspecto pode ser considerado como autor “seminal”, expressão que abomino,
mas que neste caso é cabível) outros tantos escritores (contistas, romancistas
e novelistas) – e não somente baianos, mas também mineiros, sergipanos e
alagoanos – fizeram das margens do Rio São Francisco cenário para suas
histórias e dos tipos que lá vivem seus personagens, heróis e/ou vilões,
conforme as exigências dos respectivos enredos. Esse pioneirismo foi não
somente reconhecido, mas exaltado em estudos literários e em pronunciamentos de
vários acadêmicos (notadamente de Jorge Amado) na Academia Brasileira de
Letras.
É certo que Deocleciano
é hoje mais conhecido, pelos que não estão familiarizados com Literatura, tanto
como pintor e escultor, quanto, e principalmente, como jurista. Neste último
caso, após diplomar-se, em 1931, no curso de Estudos Jurídicos e Sociais pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolveu brilhante carreira na magistratura.
Foi auditor de guerra, comissário de polícia, juiz de Direito e, finalmente,
desembargador. E tudo na antiga Capital Federal, onde morreu em 1974, aos 68
anos de idade, quando tinha, ainda, “muita lenha para queimar”, principalmente
como escritor, após aposentar-se de suas funções no Judiciário. Mas... a morte
não manda recado e não poupa ninguém.
O que nos importa,
porém, é sua atuação literária. Suas histórias – quer contos, quer romances –
têm tudo a ver com o Rio São Francisco, com suas baixas e cheias, com seus
pescadores e agricultores, à margem do qual nasceu, na cidade de Barra, que
deixou aos 17 anos de idade, depois que o comércio de seu avô, o capitão
Joaquim Vim Vim, foi à falência, deixando a família na penúria. Mudou-se para
Cuiabá, onde cursou o ginásio. Completada essa fase de ensino, resolveu migrar
para o Rio de Janeiro, onde acreditava que teria maiores oportunidades. E, de
fato, teve. Venceu na então capital do País.
Poderia escrever,
ainda, muita coisa a propósito do Deocleciano Martins de Oliveira escritor, mas
não o farei. Deixo por conta de outros historiadores da Literatura brasileira,
muito mais habilitados (e competentes) do que eu, para que o façam. Mas
transcrevo, abaixo, um trecho do seu conto “Cheia Grande”, publicado na
antologia “Histórias da Bahia! (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) que tem
servido de referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais
ficcionistas baianos:
“Esta
história foi inspirada pela Bíblia ao próprio protagonista. Os fatos se repetem
de maneira impressionante e, se os personagens mudam, têm, muita vez, os mesmos
nomes. Como prova disso, cá está o Sr. Noé, varão honesto e justo, que vivia
ali no rio São Francisco, na graça de Deus, lavrando a terra.
As
coincidências que se vão desenrolar tiveram naturalmente causas complexas,
porém a mais forte foi, sem dúvida, a de um vigário ter batizado um menino,
certo dia, com o nome fatídico de Noé.
É
mesmo natural que, atingida a idade de ouvir histórias, os pais lhe tivessem
contado a tragédia do dilúvio universal, não como uma espécie de submersão da
Atlântida, mesmo sem iguais conseqüências, interpretada com exagero por um povo
que desconhecia o resto do globo, e tida como um catigo divino pelo espírito
religioso da época, quando não passava de um cataclismo natural, explicável
cientificamente. Era a narrativa banal dos catecismos que o pai de Noé lhe
repetia, certamente concitando o filho a imitar seu homônimo, justo e bom, a
fim de ser considerado entre os homens e ganhar o reino dos céus...
É
de se supor a impressão causada ao pequeno pelas descrições do espírito e
destino do patriarca de quem herdara o nome. Dizem mesmo que passou a ter um
fraco, logo explorado pela família. Assim que se fazia traquinas, os parentes
sabiam a maneira prática de aquietá-lo: lembravam-no de que Noé nunca cometia
peraltagens, ou não gostaria da brincadeira, bastante se tornava para que o
petiz ficasse mansinho como uma pomba.
Desta
forma, à proporção que se desenvolvia, a mais e mais se identificava com o xará
(...)”.
Bem, interrompo, neste
ponto, a narrativa, até para deixar em você, caro leitor, que me honra com sua
assídua companhia, aquele gostinho de “quero mais”. Estou convicto, contudo,
que consegui esboçar razoável perfil desse “monstro”, dessa verdadeira
“aberração da natureza” (tudo no bom sentido, claro) que foi o pintor,
escultor, desembargador e, principalmente (no meu caso) escritor Deocleciano
Martins de Oliveira.
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