Sunday, February 02, 2014

Escritor seminal

Pedro J. Bondaczuk

O ficcionista baiano Deocleciano Martins de Oliveira tem papel dos mais importantes na Literatura brasileira, sobretudo na de caráter regional. É tido e havido como um dos precursores da chamada “vertente do Rio São Francisco” na ficção, enfocando coisas e gentes que viviam (e vivem) às margens desse importante curso d’água, que nasce e “morre” em território nacional e cuja transposição para áreas áridas do Nordeste gera esperanças e polêmicas (mais estas do que aquelas) . Não se pode afirmar que tenha sido o precursor dessa corrente. Mas foi, sem dúvida, seu mais ilustre representante.

Inspirados por ele (e nesse aspecto pode ser considerado como autor “seminal”, expressão que abomino, mas que neste caso é cabível) outros tantos escritores (contistas, romancistas e novelistas) – e não somente baianos, mas também mineiros, sergipanos e alagoanos – fizeram das margens do Rio São Francisco cenário para suas histórias e dos tipos que lá vivem seus personagens, heróis e/ou vilões, conforme as exigências dos respectivos enredos. Esse pioneirismo foi não somente reconhecido, mas exaltado em estudos literários e em pronunciamentos de vários acadêmicos (notadamente de Jorge Amado) na Academia Brasileira de Letras.

É certo que Deocleciano é hoje mais conhecido, pelos que não estão familiarizados com Literatura, tanto como pintor e escultor, quanto, e principalmente, como jurista. Neste último caso, após diplomar-se, em 1931, no curso de Estudos Jurídicos e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolveu brilhante carreira na magistratura. Foi auditor de guerra, comissário de polícia, juiz de Direito e, finalmente, desembargador. E tudo na antiga Capital Federal, onde morreu em 1974, aos 68 anos de idade, quando tinha, ainda, “muita lenha para queimar”, principalmente como escritor, após aposentar-se de suas funções no Judiciário. Mas... a morte não manda recado e não poupa ninguém.

O que nos importa, porém, é sua atuação literária. Suas histórias – quer contos, quer romances – têm tudo a ver com o Rio São Francisco, com suas baixas e cheias, com seus pescadores e agricultores, à margem do qual nasceu, na cidade de Barra, que deixou aos 17 anos de idade, depois que o comércio de seu avô, o capitão Joaquim Vim Vim, foi à falência, deixando a família na penúria. Mudou-se para Cuiabá, onde cursou o ginásio. Completada essa fase de ensino, resolveu migrar para o Rio de Janeiro, onde acreditava que teria maiores oportunidades. E, de fato, teve. Venceu na então capital do País.

Poderia escrever, ainda, muita coisa a propósito do Deocleciano Martins de Oliveira escritor, mas não o farei. Deixo por conta de outros historiadores da Literatura brasileira, muito mais habilitados (e competentes) do que eu, para que o façam. Mas transcrevo, abaixo, um trecho do seu conto “Cheia Grande”, publicado na antologia “Histórias da Bahia! (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) que tem servido de referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos:

“Esta história foi inspirada pela Bíblia ao próprio protagonista. Os fatos se repetem de maneira impressionante e, se os personagens mudam, têm, muita vez, os mesmos nomes. Como prova disso, cá está o Sr. Noé, varão honesto e justo, que vivia ali no rio São Francisco, na graça de Deus, lavrando a terra.

As coincidências que se vão desenrolar tiveram naturalmente causas complexas, porém a mais forte foi, sem dúvida, a de um vigário ter batizado um menino, certo dia, com o nome fatídico de Noé.

É mesmo natural que, atingida a idade de ouvir histórias, os pais lhe tivessem contado a tragédia do dilúvio universal, não como uma espécie de submersão da Atlântida, mesmo sem iguais conseqüências, interpretada com exagero por um povo que desconhecia o resto do globo, e tida como um catigo divino pelo espírito religioso da época, quando não passava de um cataclismo natural, explicável cientificamente. Era a narrativa banal dos catecismos que o pai de Noé lhe repetia, certamente concitando o filho a imitar seu homônimo, justo e bom, a fim de ser considerado entre os homens e ganhar o reino dos céus...

É de se supor a impressão causada ao pequeno pelas descrições do espírito e destino do patriarca de quem herdara o nome. Dizem mesmo que passou a ter um fraco, logo explorado pela família. Assim que se fazia traquinas, os parentes sabiam a maneira prática de aquietá-lo: lembravam-no de que Noé nunca cometia peraltagens, ou não gostaria da brincadeira, bastante se tornava para que o petiz ficasse mansinho como uma pomba.

Desta forma, à proporção que se desenvolvia, a mais e mais se identificava com o xará (...)”.

Bem, interrompo, neste ponto, a narrativa, até para deixar em você, caro leitor, que me honra com sua assídua companhia, aquele gostinho de “quero mais”. Estou convicto, contudo, que consegui esboçar razoável perfil desse “monstro”, dessa verdadeira “aberração da natureza” (tudo no bom sentido, claro) que foi o pintor, escultor, desembargador e, principalmente (no meu caso) escritor Deocleciano Martins de Oliveira.


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