Visão crítica aliada à
perícia descritiva
Pedro
J. Bondaczuk
O conto com que Luiz
Henrique Dias Tavares participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR,
Rio de Janeiro, 1963) que tomei como referência para esta série de estudos
sobre 23 dos principais ficcionistas baianos, tem o título de “O velho”. Foi extraído
do seu livro “A noite do homem”. Sobre essa obra, aliás, há uma peculiaridade
que deve ser destacada. Ela foi publicada por duas editoras diferentes, em
épocas e regiões diversas, e em ambas foi sucesso de vendas. Pudera! O livro é
muito bom! A primeira publicação ocorreu em 1960, na Bahia, integrando a
coleção “Tule”. A segunda deu-se anos depois, quando Luiz Henrique já era
conhecido além fronteiras do seu Estado, e ocorreu em São Paulo. Ambas,
reitero, foram bem sucedidas, sucesso esse comprovado pelas sucessivas edições
que tiveram por parte das duas editoras. O que é bom – salvo exceções – vende
logo, e muito.
Antes de reproduzir
trecho do seu conto “O velho” – aquele com que inicia a produção ficcional –
peço licença para comentar, brevemente, um trecho da entrevista que Luiz
Henrique Dias Tavares deu, em 2005, a determinada revista, especializada em
História. Nela, o mestre aborda, entre outros assuntos, a situação social
brasileira e no que esta tende a redundar, para o País, a longo prazo, no futuro.
Acima de tudo, mostra-se cético em relação às ações dos vários governos, no
sentido de promover a inclusão de milhões e milhões de brasileiros, excluídos
das benesses do desenvolvimento econômico. Para ele, a escravidão não acabou.
Persiste no País, mais de cem anos após a promulgação da Lei Áurea.
É verdade que isso
ocorre, no seu entender, de forma dissimulada, embora em alguns grotões do
Brasil ela seja até mesmo ostensiva e tão perversa como era antes de 1888. Luiz
Henrique atribuiu grande parte disso ao fato dos brasileiros desconhecerem sua
real história, notadamente a regional. E desconhecem mesmo. Ou melhor,
“desconhecemos” (pois também sou ignorante neste mister). Esse desconhecimento
possibilita que espertalhões se aproveitem da vulnerabilidade social dos mais
humildes e desprotegidos e explorem-nos, com a mesma sem cerimônia, como faziam
os antepassados da chamada elite nos tempos anteriores ao propalado fim da
escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888. Para Luiz Henrique, todavia, essaa
servidão ainda não acabou. Está, apenas, disfarçada. E essa exclusão social
persistente é uma das causas do atraso crônico do País quando analisado no
conjunto e não apenas enfocado por algumas regiões mais desenvolvidas, como o
Sudeste e Sul, onde o atraso e a exploração também existem, mas não são tão
ostensivos e nem tão generalizados.
“O Brasil só será o
Brasil em 2050”, afirmou, na oportunidade. Passados quatro anos, em outra
entrevista que deu, em 2009, Luiz Henrique sustentou a mesmíssima opinião, a
despeito de inegáveis avanços sociais ocorridos ao longo dos dois mandatos do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Afirmou, nessa ocasião: “Não vejo avanço
no ensino da história dos Estados brasileiros, em especial no Norte e Nordeste.
E, de vez em quando, ainda aparecem denúncias de escravidão. Não é exploração
do trabalho. É escravidão. A Lei Áurea é uma mentira”. Por tudo o que vejo e
que leio, e pelo que meus amigos escritores, que vivem em lugares mais
distantes do Brasil (nos chamados “grotões”), me relatam, concordo
(infelizmente) com Luiz Henrique.
Quanto ao seu conto “O
velho”, cujo início reproduzo abaixo, chamo em particular a atenção do leitor
para a incrível capacidade descritiva desse notável ficcionista, que não fica
nada a dever ao consagrado historiador. Suas palavras são tão precisas e bem
colocadas, que conseguimos “visualizar”, sem a necessidade de nenhuma
ilustração gráfica, o cenário onde o enredo se desenvolve. E, principalmente,
vemos nitidamente a “fotografia”, de corpo inteiro, dos personagens que o
contista cria, calcados na realidade. Se acharem que estou exagerando,
confiram, e certamente me darão razão.
“Era
uma terra amarela, petrificada, aberta em sulcos largos. Sob o amanhecer,
ficava roxa e, enquanto o dia não surgia de todo, apresentava duas tonalidades
bem distintas: uma, cinzento-escuro, outra verde-carregado. Sob o
cinzento-escuro ou o verde-carregado, estendiam-se parte das terras amarelas e
muito das terras negras. Era possível diferenciá-las. As terras amarelas subiam
e desciam às encostas, em diversas faixas compridas e rasgadas. Por sua vez, as
terras negras, deitadas ao longo daquele pequeno vale de Jaguaribe, cobriam as
baixas, margeando o rio, os afluentes e os pequenos cursos dágua. Terras
descansadas e úmidas. Nos meses sem chuva são as únicas cultiváveis. Os homens
as revolvem – com o gume dentado das suas enxadas; elas recebem as sementes e
germinam.
Agora
está clareando o dia. A baixada é um lençol branco, coberto de espuma.
No
recuado, o galpão dos agregados semelha um barco, mas um barco estranho, de
quilha reta. Alguns bois ruminam perto – pontos sombrios, parados. De repente,
no mundo impreciso, longos rasgões cor-de-laranja iluminam a baixada e as
encostas. As folhas verdes do canavial novo, erguidas sobre a terra, ficam
tocadas pelo fogo. É o dia.
Acordado
com os primeiros galos o coronel veio esperar o sol. Está sentado em cadeira de
espaldar alto. Avança o corpo, força a vista no extremo do campo, e até além, além do longe, depois
da linha entre o negro e roxo. Investiga um instante aquelas terras que são
domínio seu. Acha tudo bom, sob o clarão que se embranquece, e se recosta na
cadeira para tossir melhor.
Estava
velho. A pele, couro áspero e rugoso, despencava-se pelo rosto; no ventre, formava
ondas. As pernas emperravam, pesadas. Com esforço grande arrastava o chinelão
de couro cru. No rosto largo e curto, os olhinhos, remelentos, enxergavam
menos.
A
voz, antes forte e cheia, soava fraca e sem tom. Tornara-se desleixado. A barba
crescia informe; a pêra alongava fios sujos de fumo e catarro. O bigode
introduzia-se na boca. Na calça de urucubaca os restos de urina alongavam
pernas e pontos.
Sentado
no varandado, bengalão de castão de ouro entre as pernas, o casaco fechado, as
mãos de veias inchadas sobre as coxas magras, procurava ver o nevoeiro se
afastar na baixada.
O
sol se espalha. Sobe fumaça do galpão, surgem ruídos. A cabeça do velho pende
para a frente; cochila. Os fatos se embaralham no sonho, enxerga bois e
canaviais, a baixa se alagando, é então a cheia de 19, o Jaguaribe barrento,
subindo para as terras negras, cobrindo-as, espraiando-se para as terras
amarelas (...)”
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