Thursday, November 02, 2017


Vírus da Literatura

Pedro J. Bondaczuk


O "vírus" da literatura entrou cedo em meu sangue, quando eu era muito garoto, tinha sete anos --- se é que as garatujas que então perpetrei possam ser chamadas com essa pomposa designação --- e nunca mais me largou. Minhas primeiras tentativas infantis foram exatamente no mais difícil dos gêneros, a poesia, através de versos com a linguagem de criança (não fui um menino prodígio), mas que tinham lá a sua força poética.

Meus pais devem ter guardado aqueles primeiros rabiscos e com orgulho. Muitas vezes repudiei-os, por questão de vaidade. Hoje, maduro, concordo que sejam preservados, pois foram a raiz de uma árvore que espero seja forte e frondosa e renda muitos frutos (e não me refiro a dividendos monetários, que é o que menos importa), no futuro (quanto mais remoto, melhor).

Muitas vezes me pergunto: se não é por dinheiro, o que me move a expor perante o público meus sentimentos mais íntimos, meus sonhos mais loucos, minhas ilusões mais preciosas, meus desencantos mais doloridos e minhas angústias mais terríveis, em um desnudamento despudorado da alma, me expondo à chacota dos medíocres e às críticas ferinas dos imbecis? Generosidade? Ingenuidade? Vaidade?

Talvez tudo isso. Talvez nada disso. Na verdade, o ato de escrever --- e não me refiro ao jornalismo, que é mera profissão que me garante o sustento e o da família --- é uma tentativa de fugir da morte. Não da física, evidentemente, pois desse destino ninguém consegue escapar. É uma fatalidade biológica. O que tentamos evitar é o esquecimento, a forma mais terrível e definitiva de morrer.

Paul Valéry tem uma teoria um pouco diferente, diria mais cínica, a respeito, mas que pode ser a verdadeira motivação para o escritor (ou aquele que pretenda ser) não tentar se livrar desse "vírus", tão definitivo quanto o da Aids. Afirma: "Todo artista quer inspirar o ciúme até o fim dos tempos".

Talvez seja isso mesmo. Quantas vezes, ao lermos os clássicos, não gostaríamos de ser os autores de determinado romance, ou poema, ou ensaio (como os de Henry David Thoreau)! Por isso tentamos criar, nem que seja um arremedo desses textos eternos. Ciúmes! Nada mais que ciúmes!

Mas para escrever bem, é preciso que haja relativa liberdade de manobra. É indispensável que não se "engesse" a criatividade mediante prazos, compromissos, regras ou algo que o valha. A propósito, lembro-me de um provérbio taoísta, que li não sei onde, mas que tive o capricho de anotar, e que diz: "O que faz a mão tremer na hora de retesar o arco é a obrigação de acertar o alvo".

A arte é manifestação espontânea. Claro que não implica apenas no que se convencionou chamar de "inspiração". Aliás, depende muito mais da "transpiração", da pesquisa, da precisão, do fazer, refazer, tornar a fazer e refazer uma dezena, centena ou milhar de vezes. Mário de Andrade chegou a demorar 18 anos para dar um conto por concluído. Por isso foi um contista magistral.

Mas o escritor paulista pôde agir assim porque não estava "obrigado" a escrever esse texto. Ninguém estava cobrando prazo e muito menos a maneira como essa história em particular (não me lembro qual) deveria se desenrolar. Não é como no jornalismo, quando somos premidos não apenas por horários, mas temos que adaptar nosso estilo de redigir ao gosto do poderoso (ou puxa-saco) de plantão. Quem atua nessa profissão sabe o que quero dizer.

Outro equívoco de muito escritor novato (ou projeto de escritor) é quanto ao tema a abordar. A maioria envereda pelo terreno da erudição, por assuntos que sequer domina ou aprecia, apenas para mostrar cultura. Trata-se de um tremendo equívoco. A literatura é uma forma de comunicação e, como tal, precisa, evidentemente, ser entendida, para satisfazer seu papel. O caminho mais adequado é o da simplicidade (que não pode ser confundida com infantilidade, imbecilidade, obviedade ou mediocridade).

Anton Checov, um dos maiores contistas russos de todos os tempos e clássico universal nesse gênero, recomendou, em certa ocasião: "Escreva sobre tua aldeia e descreverás o mundo". A nossa experiência pessoal pode nos parecer pífia ou mesquinha, mas parecerá assim para os leitores?

E nem me refiro aos do presente, mas àqueles que tiverem acesso ao nosso texto dentro de vinte, cinqüenta ou cem anos. Na pior das hipóteses, o que tivermos escrito será um documento histórico, retratando uma época (a nossa), com seus trajes, costumes, idéias, angústias, contradições e linguajar. É o que procuro fazer nesta série de crônicas que venho publicando nos últimos três anos que tem dois objetivos:

O primeiro, é o de ser uma "conversa" descontraída, como a que temos com os amigos no "happy hour" depois de um dia desgastante e irritante de trabalho, em que somos forçados a suportar toda a sorte de cobranças, velhacarias e aborrecimentos. E o segundo, o de se transformar em um testamento de um homem comum, de fins do segundo milênio, para supostos leitores do terceiro. E acredito que pelo menos isto vou conseguir. Tomara...


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

No comments: