Thursday, November 09, 2017

Tentando entender as obsessões Borges

Pedro J. Bondaczuk


A obra literária de Jorge Luís Borges, de 41 livros publicados, muitos dos quais editados em vinte idiomas diferentes, traz ao assíduo leitor uma infinidade de assuntos. Alguns mereceram apenas ligeiras menções, enquanto que outros ocuparam não apenas um, mas vários volumes da sua extensa bibliografia. Afinal, por mais profunda que fosse sua cultura (e esta era excepcional), como todo ser humano, o escritor argentino não tinha (mas bem que ambicionou ter) a virtude da onisciência. Cinco temas, entretanto, predominaram em sua poesia, e nas narrativas curtas, ensaios e outros tantos textos seus: os espelhos, os labirintos, os tigres, os punhais e os tipos humanos, sobretudo da sua Buenos Aires natal.

Já tratei desse assunto um sem número de vezes, porém, volta e meia descubro novidades a respeito, através da leitura de textos “de” e “sobre” Jorge Luís Borges, escritor que me desperta especial fascínio e que influenciou e segue influenciando minha maneira de ver, entender e de fazer literatura. A origem dessas cinco obsessões borgianas a que me referi está, como ele mesmo confidenciou em mais de uma oportunidade, na sua infância. Era de se esperar. Essa é uma fase que, sem que nos apercebamos ou admitamos, muitas vezes determina o que faremos e o que seremos no restante de nossas vidas. É o que pude constatar em minha experiência pessoal. Quase todas as ideias que exploro são coisas que pensei, posto que rusticamente, na meninice e que amadureci com o tempo.

O crítico literário Leo Gilson Ribeiro, em excelente análise que fez da obra borgiana, na coluna que assinava periodicamente no extinto “Jornal da Tarde”, na explanação que fez a respeito na edição de 16 de junho de 1986, explica como se deu essa assimilação mágica do escritor argentino das coisas que o fascinavam (mas também aterrorizavam) quando criança. Essa obsessão temática, admitida pelo próprio Borges, foi confirmada por seus parentes, amigos e por diversos estudiosos de sua obra (entre os quais me incluo). Analisemos, uma por uma, essas vertentes que, para mim dizem muito das motivações literárias desse escritor.

Sobre o fascínio de Borges por espelhos, a melhor das explicações foi dada por sua irmã Norah, casada com o crítico literário Guillermo de La Torre. Claro que ela aponta somente a causa externa da obsessão borgiana e não o processo psicológico que despertou essa marcante fantasia infantil que perdurou pelo resto da vida do irmão. Ela informou: “Os espelhos foram uma obsessão durante a infância de Jorge. No quarto havia um grande, que refletia a sua imagem. Ficar só, na cama, com esse objeto à sua frente, era seu terror diário. Era uma ameaça contínua. Jorge tinha medo até do vago reflexo de seu rosto no espelho”, revelou Norah.

Leo Gilson Ribeiro acrescentou a propósito: “… Em casa, se via triplicado por três espelhos de um armário grande e temia que aquelas três imagens pudessem mostrá-lo diferente do que ele fosse realmente. E, se de repente, ele surgisse diferente do que ele fosse realmente? E, se de repente, ele surgisse não só diferente, mas metamorfoseado em algo monstruoso, apavorante, irreconhecível e irreversível?”. Muitos de nós também tivemos fascínio parecido pelo espelho, embora não nos lembremos, ou não admitamos ou que sequer saibamos. Observemos, por exemplo, uma criança que comece a tomar consciência do ambiente em que está. Coloquemo-la diante de um espelho, objeto que ela nunca tenha visto antes. Sua primeira reação, provavelmente, será a de buscar contato tátil com aquele “outro” que vê refletido à sua frente e que lhe parece familiar.

Ao perceber, porém, que cada gesto que faz é reproduzido integralmente pela imagem que vê, embora não revele verbalmente ao observador (por ainda não dominar a comunicação pela palavra), se observarmos atentamente essa criança notaremos em seu rosto enorme perplexidade, desesperada indagação muda, seguida, muitas vezes, de instintiva reação de medo. Poucos de nós não passamos por experiência parecida, embora não nos lembremos. E poucos de nós não manifestamos medo pelo desconhecido. É questão de instinto.

As outras quatro obsessões de Jorge Luís Borges nada têm a ver com experiências reais, concretas, vividas pelo escritor. São impressões de leitura, de observações visuais ao acaso ou de casuais e inconscientes associações de ideias. Os labirintos, por exemplo, segundo Maria Esther Vasquez, amiga pessoal do escritor, advêm da sua lembrança de uma gravura que viu quando menino tratando do Minotauro de Creta, onde este ser meio homem e meio touro estava confinado. As impressões que temos quando crianças são as mais puras e lúcidas, pois não sofrem a influência de eventual tentativa de análise ou de explicação do que vemos. Isso vem depois, às vezes, muito depois. Elas fixam-se, simplesmente, na memória, como as imagens se fixam em chapas fotográficas virgens e de boa qualidade.

A esse propósito, Borges revelou que o labirinto era “o assombro que cria a metafísica, como diz Aristóteles, e o assombro foi sempre uma das emoções mais comuns em minha vida, como na de Chesterton, que dizia: ‘tudo passa, mas sempre fica o assombro, sobretudo o assombro perante a vida de todos os dias”. Voltarei ao assunto para comentar as outras três obsessões do meu guru literário.



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