Reencontro diário
Pedro J. Bondaczuk
A autoaceitação é um dos fatores fundamentais para que nos
sintamos felizes (embora, claro, não seja o único). Devemos nos
aceitar como somos e, para que isso se torne possível, temos que
levar uma vida simples e ordenada, sem excessivas ambições e nem
culpas, conhecendo os nossos limites e somente nutrindo sonhos e
desejos que sejam factíveis e estejam ao nosso alcance. Difícil?
Sem dúvida.
Temos duas tendências antagônicas, ambas fontes de profunda
insatisfação pessoal. Uma é a da supervalorização das nossas
supostas virtudes e talentos. Achamos que somos mais, muito mais do
que aparentamos ou do que os outros achem e que não somos
devidamente valorizados pelas pessoas do nosso convívio. Convivemos,
por isso, com permanente sensação de sermos injustiçados (quando,
na maioria das vezes, não somos).
A segunda tendência – no meu entender ainda pior do que a primeira
– é a da subvalorização. É o que os psicólogos chamam de
“complexo de inferioridade”. Julgamo-nos inferiores a todos e
sofremos muito por isso. Tornamo-nos tímidos, retraídos, arredios,
vacilantes e profundamente antissociais.
Damos excessiva importância às opiniões alheias ao nosso respeito
e não nos aceitamos como somos, o que, claro, é um grande erro. Por
fim, acabamos por adquirir o vício da infelicidade e sequer atinamos
com a mais remota possibilidade de mudança de comportamento para
melhor.
Outro fator, diretamente ligado à autoaceitação, é a convivência
com culpas (reais ou imaginárias, não importa). Quem age dessa
forma, vive em perpétuo sobressalto, temendo punições e/ou
retaliações. O melhor exemplo, deste tipo de pessoa, é o estudante
Rodion Romanovitch Raskolnikov, personagem criado pelo escritor russo
Fedor Dostoievsky, em seu clássico “Crime e Castigo”.
O referido indivíduo, apesar de ser professor de línguas, vivia em
estado de profunda miséria. Achava-se, claro, injustiçado, ainda
mais quando observava uma velha agiota, cuja obsessão era a de
juntar valores (dinheiro, jóias etc.), sem usufruir dos benefícios
de sua riqueza. Ponderou e concluiu que esta era uma pessoa inútil e
até nociva à sociedade e que ninguém se importaria se a matasse e
subtraísse seus bens.
Da cogitação, à efetiva ação, foi um passo. Em determinado dia,
Raskolnikov assassina a velha agiota a machadas. Contudo, as
circunstâncias forçaram-no a não se limitar a esse crime. Teve,
também, que matar Lisavieta, irmã da anciã, que havia visto o
cadáver no chão e, certamente, o denunciaria.
A partir de então, o estudante vive no inferno. Sequer aproveita o
resultado do roubo que praticara, no caso algumas jóias de relativo
valor. Arrependido do que havia feito, mesmo sabendo que não poderia
voltar atrás no crime, enterra, sob uma pedra, o que havia roubado.
Mas a consciência de Raskolnikov não lhe dá tréguas. Com todas as
pessoas que cruzava, não importa se estranhas ou conhecidas, tinha a
sensação de que elas sabiam o que havia feito. E o olhar – por
mais inocente e casual que fosse – que estas lhe dirigissem, era,
em sua mente atormentada, enfáticos libelo de acusação.
Mesmo depois que a polícia prendeu um suposto culpado, que
inexplicavelmente havia confessado o crime que não tinha cometido, o
remorso e a sensação de que todos sabiam que era o verdadeiro
assassino persistia na mente do estudante. A consciência não lhe
dava tréguas. Até que um dia, estimulado por Sônia, a mulher que
amava, confessou às autoridades seu delito.
São muitas as vezes em que convivemos com essa mesma sensação de
culpa, devendo ou não. E sofremos inutilmente, quando a atitude mais
sábia seria a de nos livrarmos desse inútil peso na consciência.
Como? Muito simples. Se realmente prejudicamos alguém, o caminho
mais sábio, sem dúvida, é o da reparação da falta. Caso não
seja possível repará-la, o melhor que se faz é ter a humildade de
pedir perdão ao ofendido.
O irônico é que os verdadeiros culpados, aqueles que de fato se
esmeram em fazer o que não devem, nunca se julgam maus. Têm a
consciência embotada. Quando eu era estudante de Direito, fui, um
dia, com meu professor, visitar uma cadeia pública da minha cidade,
para conversar com os presos. Nas entrevistas (foram umas dez),
nenhum, absolutamente nenhum deles admitiu o delito de que era
acusado. Eram todos uns “anjinhos”, totalmente inocentes,
injustiçados pela família e pela sociedade.
Um deles era acusado de haver chacinado, de forma bárbara e brutal,
toda uma família, apenas para roubar alguns míseros trocados, crime
que causara profunda revolta popular na época. Mas, a despeito das
provas contundentes contra ele, teimava em se declarar (e jurava por
todas as juras) inocente. Insistia em afirmar que fora preso por
engano. Não fora, é claro. Um sujeito assim jamais terá dor de
consciência. Não mais a possui.
O escritor francês, Paul Valéry, constatou, em um de seus textos, a
propósito da relação que há entre autoaceitação e felicidade:
“O homem feliz é aquele que ao despertar se reencontra com prazer
e se reconhece como aquele que gosta de ser”. Como se vê, é uma
receita simples, simplérrima, ao alcance de todos, que não implica
em nenhuma complexidade e independe da ação alheia. Que tal
experimentarmos agir assim?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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