Sem despedidas
Pedro J. Bondaczuk
As amizades (tenho escrito isso com grande frequência) são
privilégio e bênção, embora aconteçam de forma natural, não
raro, até, à nossa revelia. Mas é possível sermos amigos de
alguém a quem nunca vimos, com quem jamais conversamos, e ainda
assim esteja sempre presente ao nosso lado, se manifestando nos
momentos que mais precisemos (ou simplesmente queiramos) e a respeito
de quem conheçamos as mais triviais informações biográficas?
Minha resposta é: sim!
“Mas como?”, perguntará, intrigado, o leitor, não vendo como
isso seja possível. Asseguro, todavia, que isso não só está no
terreno das possibilidades, mas ocorre com maior frequência do que
você possa supor. É o caso da minha amizade espiritual com dezenas
de milhares de escritores. A imensa maioria deles, inclusive, morreu
muitos anos antes do meu nascimento, alguns até séculos, quando não
milênios (como Homero, Virgílio, Píndaro e Horácio, por exemplo)
e, no entanto, estão comigo constantemente.
Devo-lhes não apenas minha forma de encarar e de fazer literatura,
mas de entender o mundo, as pessoas, os sofrimentos e alegrias, a
felicidade e a dor, enfim, a vida. Não se trata de nenhum exercício
de mediunidade, óbvio. “Converso” com eles mediante as ideias,
conceitos, emoções e pensamentos que eles tiveram e, generosamente
registraram e legaram à posteridade. Trata-se, na verdade, não de
diálogos, mas de ilustrativos monólogos, em que somente esses meus
mestres, meus gurus, meus “amigos” espirituais “falam”.
Nossos encontros cotidianos são sempre informais, sem cerimônias e
nem salamaleques, como devem ser os contatos com pessoas que privem
da nossa intimidade pelas vias sagradas da amizade. Não visto trajes
especiais, por exemplo, para essas reuniões. Não raro elas ocorrem
comigo vestindo confortável roupa caseira (um pijama, por exemplo),
ou, dependendo da estação do ano, até mesmo uma bermuda ou sumária
sunga. Eles nunca repararam nesse aspecto.
Ademais, esses diletos amigos jamais assumem ares pedantes e nem
polarizam a palavra. “Falam”, apenas, quando quero que falem e
abordam, via de regra, os temas específicos que quero que abordem. E
nunca me falharam. Sempre que quero saber de alguma história
instigante, convoco alguns deles, que podem ser, por exemplo, Fedor
Dostoievski, ou Leon Tolstoi, ou Máximo Gorki, ou Gogol, ou Puchkin,
quando não Honoré Balzac, Victor Hugo, Eça de Queiroz, Guy de
Maupassant, Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, José
Saramago ou Edgar Alan Poe. São tantos! E tão versáteis! E tão
criativos!
O amigo ao qual mais recorro nessas ocasiões, todavia, é o “Bruxo
do Cosme Velho”, Machado de Assis, que sempre tem um personagem
marcante a me apresentar, como Capitu, Bentinho, Escobar, Dom
Casmurro, Brás Cubas, Helena e tantos e tantos outros, que me marcam
com seus dramas, aventuras e atitudes. Isso sem falar dos que ele
manipula à perfeição, como perito títere de marionetes, na
centena de contos seus que leio, releio, treleio, esmiúço e
analiso, já que este é o gênero da minha predileção e, portanto,
minha especialidade literária.
Recorro, também, com frequência, a filósofos e ensaístas, como
Henry David Thoreau, Montaigne, Ralph Waldo Emerson, Francis Bacon,
Blaisé Pascal, Octávio Paz (do qual me delicio, de lambuja, com
seus mágicos poemas), Bertrand Russell e tantos e tantos e tantos
outros, que não menciono nominalmente para não maçar você,
paciente e fiel leitor.
Todavia, meus contatos mais frequentes são com poetas. São, por
exemplo, com Fernando Pessoa, meu heteronímico e notável guru. São
com Mário de Sá Carneiro, com Florbela Espanca, com Johann Wolfgang
Goethe, com Lamartine, com Shelley, com Rilke, com T. S. Elliot, com
Walt Whitman, com Gabriela Mistral, com Pablo Neruda.
Mas que os brasileiros não fiquem com ciúmes (nunca ficam). Estou,
sempre, me encontrando (com devoção e deleite) com Cecília
Meirelles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário
Quintana, Vinícius de Moraes, Ledo Ivo, Guilherme de Almeida, João
Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Castro
Alves, Olavo Bilac, Adélia Prado, Talis Andrade, Luís Augusto
Cassas, Fabiana Bórgia, Suzana Vargas, Paulo Mendes Campos, Lindolfo
Bell, Paulo Bonfim, Corrêa Junior, Patativa do Assaré e tantos, e
tantos, e tantos outros. Esses encontros são orgias de emoção e
sensibilidade.
Jorge Luís Borges escreveu, se não me falha a memória em sua
“História da eternidade”: “Homero e eu separamo-nos nas portas
de Tanger. Creio que não nos despedimos”. Posso dizer que me
separo, diariamente, desses diletos amigos espirituais nos mais
diversos locais: no meu quarto, no meu gabinete de trabalho, na
redação do jornal em que sou editor, na minha biblioteca, na sala
de espera do dentista, etc. Nunca, todavia, me despeço. E não é
por falta de educação da minha parte. É porque lhes digo mero e
trivial “até breve”, na certeza de nos vermos no próximo dia.
A propósito, deixei Jorge Luís Borges para o fim, mas não por
tê-lo em menor conta, mas exatamente por motivo oposto. Todos que me
conhecem, pessoalmente ou por leitura dos meus textos, sabem da
veneração que tenho por esse fantástico escritor argentino.
Separo-me dele, todos os dias, não nas portas de Tanger (é possível
que a separação ocorra, um dia, até nesse local), mas na soleira
do meu quarto, da minha biblioteca, da minha sala... Contudo, como
ele afirma ter feito em relação a Homero, “creio que nunca nos
despedimos...” Jamais vamos nos despedir!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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