Thursday, November 23, 2017

Talento que rompeu barreiras

Pedro J. Bondaczuk

O poeta catarinense João Cruz e Sousa é, se não o meu preferido (aprecio, de igual maneira, todos os grandes talentos literários a cujas obras tenha acesso, sejam quais forem e de onde forem), um dos que mais marcaram a minha trajetória artística, intelectual e até mesmo moral. Seguramente, seu estonteante (de tão belo) livro “Broquéis”, foi o primeiro, de poesia, que li. Tinha, na ocasião, nove anos de idade, se tanto.

Tive que recorrer, claro, seguidamente ao dicionário para entender as mensagens que o escritor pretendia transmitir. E que mensagens! Na ocasião, eu já estava ensaiando meus primeiros (e por isso, toscos) versos. Vislumbrei ali um modelo a seguir. Tentei imitar Cruz e Sousa (em vão, claro), compondo sonetos com a mesma solenidade e riqueza vocabular. Faltavam-me, porém, maturidade e, principalmente, seu talento. Para escrever melhor, passei a ler, sôfrega e desesperadamente, tudo o que me caía em mãos.

Foi com esse poeta fantástico, cujo talento rompeu todas as barreiras possíveis e imagináveis, que aprendi, intuitivamente, a metrificar, a fazer rimas “ricas” e a dar ritmo aos meus versos. Pena que nas idas e vindas da vida, perdi o caderno em que registrei aqueles toscos e literariamente pobres sonetos, mas riquíssimos de emoção e de encantamento. Esse é o principal motivo da veneração que sinto por Cruz e Sousa (posto que muito longe de ser o único ou sequer um dos únicos).

Não somente a obra, como, principalmente, a vida desse homem foram admiráveis. Tratou-se de um poeta negro. E cito a cor da sua pele não para depreciá-lo (muitíssimo pelo contrário, até porque isso não é nenhum motivo de depreciação), mas para exaltá-lo e valorizar ainda mais sua vitoriosa trajetória (pela vida e pelas letras).

É impossível escrever sobre Cruz e Sousa em uma única e solitária crônica. Possivelmente, nem mesmo em um só livro alguém possa transmitir, com fidelidade, por maior que seja sua capacidade de síntese, o tamanho da suas façanha, como poeta e como homem.

Por isso, estejam certos, ainda escreverei muito sobre ele. Talvez me limite a mais algumas crônicas (não faço ideia de quantas). Talvez escreva um ensaio a seu respeito. Talvez, até, me atreva a me aventurar a escrever um livro todo, de caráter biográfico, sobre esse poeta que foi, justamente, apelidado pela posteridade de “Dante Negro”, em referência óbvia ao autor da “Divina Comédia”, Dante Alighieri, tamanho é o fascínio que tenho por ele.

Conhecendo nossa sociedade, como conhecemos, e sabendo de quão preconceituosa ela ainda é, imaginem como era seu comportamento na segunda metade do século XIX! A escravidão, essa vergonha nacional que jamais se apagará da nossa história, ainda não havia sido abolida. Se Machado de Assis era encarado em alguns círculos com reservas, pelo fato de ser mulato, imaginem o que faziam em relação a Cruz e Sousa!

As pessoas negras eram consideradas, e tratadas, não como seres humanos, mas pior até do que os animais domésticos: como objetos, como propriedades de quem as “comprasse”. Respeito intelectual por elas, portanto, não havia nenhum. E seu valor social, portanto, era (desgraçadamente) zero.

Naquela época, em que a instrução, mesmo a mais rudimentar, era um privilégio para pouquíssimos, e que arte e cultura eram tidos e havidos como “luxo” para poucos, escrever um livro era uma façanha considerável. Publicá-lo, então, era um feito magnífico, mesmo para pessoas oriundas das elites. Vendê-lo era equivalente ao que foi, no século XX, a viagem do homem à lua. E firmar-se no firmamento literário nacional era algo raríssimo, destinado a gênios.

Pois bem, Cruz e Sousa passou por cima de tudo isso. Escreveu não somente um livro, mas seis! Lembrem-se, nasceu escravo e, embora alforriado, era encarado como “aberração” por seus contemporâneos. E não apenas escreveu, como os publicou. E não só os publicou, como estes venderam. E não apenas seus livros venderam, como foi o precursor de um dos movimentos literários de maior expressão, pouco anterior ao Modernismo, que foi o Simbolismo (até hoje a escola da minha predileção).

E olhem que sequer toquei em nenhum dos aspectos da sua vida! Se algum escritor pode ser considerado vencedor em sua atividade, esse, sem dúvida, é Cruz e Sousa. No entanto... o reconhecimento da sua genialidade veio tardiamente, décadas após a sua morte. É sempre assim!

Tanto que, quando morreu, vítima de tuberculose, numa localidade mineira conhecida como Estação do Sítio, distrito da cidade de Antonio Carlos, para onde foi enviado pelos amigos por causa do clima supostamente favorável ao seu tratamento, seus restos mortais foram trasladados para o Rio de Janeiro em um vagão próprio para o transporte de cavalos! Como é imbecil uma sociedade contaminada pelo vírus do preconceito!



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