Sunday, March 29, 2015

Antes de tudo leitor

Pedro J. Bondaczuk

O leitor é o principal agente da Literatura. Sem ele, esta atividade seria inútil, redundante, uma espécie de conversa de doido. Escreveríamos, apenas, para nós mesmos, tendo por temas o que estamos fartos de conhecer. Caso não conhecêssemos, óbvio, não escreveríamos a propósito. E se já conhecemos de sobejo o teor do que nos propomos a escrever, por qual razão o perpetuaríamos em letra de forma se não houvesse pelo menos uma outra pessoa para ler? Para nos informar do que sabemos décor e salteado? Não faz sentido. Seria enorme inutilidade. Escrevemos para que outro alguém leia. Alguém de quem nada conhecemos. Qual seu sexo? Qual sua cor? E seu estado civil? Que aparência tem? É gordo, magro, alto, baixo, cabeludo, careca, loiro, moreno, olhos azuis, negros ou castanhos? Não sabemos. E isso importa?! Importa que essa entidade anônima e sem rosto nos leia e que, se possível, se torne nosso seguidor fiel, mesmo no anonimato, abstrato, quase conceitual.

Nós, que temos o hábito (ou o vício) de escrever, que fazemos da escrita profissão, ou mais que isso, opção de vida, indestrutível paixão (não raro obsessão), somos, antes de sermos escritores, leitores. Sem leitura não seríamos nada. Não iríamos a lugar algum. Não conheceríamos sequer o beabá, as normas elementares do nosso idioma e, portanto, não saberíamos como utilizar a ferramenta por excelência do nosso ofício: a palavra. Jorge Luís Borges nos lembra: “Sem leitura não se pode escrever. Tampouco sem emoção, pois que a literatura não é, certamente, um jogo de palavras. É muito mais. Eu diria que a literatura existe através da linguagem, ou melhor, ‘apesar’ da linguagem”.

Somos, portanto, primitivamente e antes de tudo, leitores. É o que nos possibilita especular, com razoável margem de acerto, o que esse personagem incógnito, mas fundamental, gostaria de ler, o que espera de nós. Às vezes acertamos, muitas vezes erramos no diagnóstico, mas nossa própria experiência funciona como uma espécie de parâmetro, de mapa do tesouro, de guia, de bússola a nos orientar. Marcel Proust, em “O tempo redescoberto”, sugere: “...Todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo”. E justifica: “A obra não passa de uma espécie de instrumento ótico que lhe é oferecido para lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria, certamente, visto em si mesmo”. Pois é, quando lemos, estamos lendo a nós mesmos, fazendo uma espécie de exame de consciência, uma descoberta do que está escondido em recônditos ciosamente camuflados do subconsciente.

O polêmico, mas excelente filósofo norte-americano, Ralph Waldo Emerson, com o qual tanto me identifico, vai além de Proust nessa questão. Garante, em “Sociedade e solidão” que “é o bom leitor que faz o bom livro; em cada livro, ele encontra trechos que parecem confidências ou apartes ocultos para qualquer outro e evidentemente destinados ao seu ouvido; o proveito dos livros depende da sensibilidade do leitor; a ideia ou paixão mais profunda dorme como numa mina enquanto não é descoberta por uma mente e um coração afins”.

E quando não concordamos com as opiniões e conceitos expressados pelo autor, como é que fica? Afinal, é uma situação até bastante comum. E mais: se o que o escritor expressou está eivado de erros – e não me refiro aos gramaticais, mas aos conceituais – ainda assim a leitura é proveitosa e não mera perda de tempo? Entendo que sim. E Jorge Luís Borges também, a julgar pelo que escreveu no prólogo da primeira edição do livro “História universal da infâmia”: “O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas, ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”.

Reitero, pois, que nenhum de nós conseguiria ser escritor, mesmo que dos mais primários e obscuros, se não fosse, antes e acima de tudo, ávido e obsessivo leitor. Está entre meus projetos literários o de escrever um livro para destacar a importância desse personagem indispensável da Literatura. Há muitas coisas a dizer a propósito, mas a tarefa não é tão fácil como possa parecer. Ademais, se conseguir atingir essa meta, não estarei sendo, sequer, original. O argentino Ricardo Piglia saiu na frente e escreveu a instigante e criativa obra “O último leitor”. Todavia, apesar de sua perícia e magistralidade, não esgotou o assunto. Há mil coisas que ele não citou e que considero importantes.

O fato é que devemos ler, muito, sempre, fartamente, obsessivamente, apaixonadamente. E se não tivermos recursos financeiros para adquirir livros, que não nos são fornecidos de graça e são relativamente caros? Bem, José Saramago também não tinha, mas acabou dando um jeito. E isso foi decisivo para que se tornasse o primeiro (e até aqui único) escritor de língua portuguesa a conquistar o cobiçado Prêmio Nobel de Literatura. Ele confidenciou, em um de seus tantos textos: “Eu fui um leitor apaixonado. Não havia livros em minha casa, mas costumava ler bastante nas bibliotecas públicas, especialmente à noite. Lia indiscriminadamente. Lembro-me de ler a tradução do ‘Paraíso Perdido’ quando tinha 16 anos. Não havia ninguém que me dissesse o que experimentar a seguir. Por isso tive uma educação literária anárquica cheia de lacunas, mas com o tempo consegui organizar uma espécie de visão coerente da literatura, acima de tudo da literatura francesa”.

Quando algum jovem talentoso, com evidente potencial de se tornar imortal no mundo das letras caso desenvolva adequadamente sua vocação (e conte com boa dose de sorte, sem dúvida) me pergunta o que fazer para se tornar escritor, embora não me sinta habilitado a aconselhar quem quer que seja, recomendo, convicto e sem titubear: LEIA!  Faça-o com o espírito aberto e tente estabelecer empatia com o autor. E nem precisa ler bem. Apenas LEIA. Piglia traz uma observação pitoresca a propósito: “Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor”. Bem ou mal, todavia, LEIA. Esta é a única chave para abrir a porta deste conciliábulo dos obcecados pelas letras, desta confraria de malditos, caso você teime em querer adentrar ao seu misterioso interior.


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