Saturday, October 12, 2013

Simulação da luta pela liberdade

Pedro J. Bondaczuk

O Brasil é, em vários aspectos, país peculiar, sobretudo no que se refere ao seu maior patrimônio: o humano. Ufanismos a parte – pois não estou raciocinando em termos de superioridade ou inferioridade racial, porquanto esse conceito é vago e, a meu ver, estúpido (ninguém é melhor do que ninguém, em sua essência, pois inexiste parâmetro rigorosamente exato para fazer esse tipo de aferição que, ademais, tenderia a ser estopim de preconceitos e discriminações) – está em andamento, há já alguns séculos, um processo que tende a redundar num tipo étnico característico e singular: o “brasileiro!. Este será, quando a miscigenação estiver concluída, mistura homogênea de todos os tipos existentes na espécie humana.

Somos um país cosmopolita por excelência. Abrigamos pessoas de todas as etnias, credos, culturas e tradições que não tardam a se aculturar e, em duas ou três gerações, perder suas características étnicas originais. Vejam, por exemplo, o que acontece especificamente na cidade de São Paulo, embora, claro, não apenas nela. Se há um povo que não pode apregoar (felizmente) “pureza racial” este é o nosso. E isso é ruim? Claro que não!!! É positivíssimo, a despeito do ranço de preconceito que ainda cerca esse processo de miscigenação por parte de alguns. Pobres deles, com suas visões tacanhas de mundo, da vida e do ser humano.

Nossa “matriz original” não existe, pois não é única. Na verdade, é tripla: o branco europeu (no caso o português, que também é fruto de miscigenação), o índio que habitava nosso território quando este foi “descoberto” e o negro, trazido à força da África, mas sem cujo braço seríamos ainda uma grande selva, inculta e atrasada. Cada uma dessas etnias nos “emprestou” sua cultura, que acabou misturada, como os genes das pessoas que a criaram, neste imenso e magnífico cadinho racial. À medida que outros povos foram chegando e aqui se fixando incorporaram, aos costumes e tradições já existentes (em que se misturavam influências européias, indígenas e africanas), seus próprios, aumentando essa mistura. Daí termos um dos folclores mais ricos e variados do Planeta, que não podemos deixar se extinguir, seja lá por qual motivo for, pelo seu inestimável valor cultural.

Um dos folguedos brasileiros mais expressivos entre os tantos existentes tem influências marcantes da fusão de culturas de nossa “tripla matriz” genético-cultural, ou seja, do branco, do índio e, no caso, sobretudo do negro. Refiro-me ao “Quilombo”, popular, sobretudo, no Estado de Alagoas, mas não somente ali, espalhando-se por todo o Nordeste e, em decorrência das contínuas e sucessivas migrações, por todo o País. Essa manifestação folclórica consiste, basicamente, na reunião de cinqüenta participantes, divididos em dois grupos: Pretos e Caboclos (esse número varia, de acordo com a região). Os primeiros trajam calças curtas azuis, porém mantêm-se nus da cintura para cima. Já os segundos, vestem-se como índios, mas de tangas, com enfeites na cabeça e no corpo.

Cada um dos lados conta com um rei e estes têm seus respectivos embaixadores. As vestimentas de todos lembram muito as dos não menos tradicionais reisados, dos guerreiros etc. Há outros personagens característicos, além dos citados. São os casos, por exemplo, da rainha dos negros, da mamãe velha ou catirina, do papai velho, do vigia dos negros, do espião dos caboclos e do vassalo dos índios, entre outros.

Todos estão armados com espadas e terçados de madeira pintada para simular batalhas. Os dois grupos lutam e, no final, os negros são vencidos. Há muita música, muita dança, muita coreografia ao som do terno de zabumba que anima as evoluções. O chefe do Quilombo é o Rei dos Caboclos. Seus trajes são mais suntuosos e sofisticados que o dos demais participantes, mostrando, aos espectadores, que ele é o personagem mais importante. Os componentes “idosos” dos respectivos grupos, são caracterizados como tal. É o caso, por exemplo, do papai velho, que ostenta cabeleira e barba brancas, e traz um cajado e uma foice nas mãos.

É interessante ressaltar que o papel da catirina é representado por um homem vestido de mulher. Seus trajes são uma saia e um casaco de florões e um pano colorido na cabeça. Além disso, pinta-se com tiana de panela. Já a rainha dos caboclos é mulher mesmo. Veste-se de branco, guarda peito de espelhos, capa amarela e diadema de papelão pintado. Os trajes são característicos e bastante interessantes, assim como tudo o mais que envolve esse tipo de folguedo.   

O enredo é dividido em duas partes. Na primeira, ocorre o resgate das coisas roubadas na véspera, ocasião em que se simulam combates entre as duas facções. Na segunda fase, acontece uma venda de escravos, com a participação do público presente, e todo o dinheiro apurado é revertido no custeio do evento. O Quilombo é um dos raros folguedos que não têm conotação religiosa e nem data específica para ser apresentado. Tem algumas variantes que recebem nomes próprios de acordo com a região em que ocorre. É o caso, por exemplo, do “Lambe-sujo” registrado no Sergipe, cujas características são idênticas às do Quilombo tradicional. A diferença é que os que representam a facção dos negros passam uma mistura de carvão e óleo na pele. Daí sua designação. Ou seja, “Lambe-sujo”.

Outra variante conhecida, posto que um tanto restrita, é a do “Nego fugido”. Ela é mantida viva, há mais de um século, numa região específica do Recôncavo Baiano, sobretudo em Acupe, distrito da cidade de Santo Amaro da Purificação. Neste caso, a diferença não se restringe à caracterização de personagens, mas ao próprio enredo do folguedo. Como o nome sugere, a encenação recria uma tentativa de fuga de escravos, que são caçados, capturados e amarrados. Na sequência, os cativos tentam comprar a alforria. Os participantes que representam os negros quando não estão correndo para fugir dos perseguidores, ou lutando, permanecem numa espécie de dança lenta, ao ritmo da música característica que, conforme folcloristas que se empenham no estudo do Quilombo, tem estreitas ligações com o candomblé. Há uma série de observações e comentários suscitados por este folguedo.

Uma das coisas, por exemplo, que causam maior estranheza, principalmente ao leigo, é o fato da encenação consistir em luta entre negros e índios. Por que? Porque estas duas etnias nunca tiveram, historicamente, rivalidades que chegassem a esse ponto. Alguns escritores sugerem que isso provavelmente se deva ao fato de, na luta para a destruição do mais famoso dos quilombos, o de Palmares, ter ocorrido a participação de alguns indígenas. É possível, mas certeza, certeza mesmo, ninguém tem. Quanto ao fato dos negros encenarem uma derrota, o provável é que o objetivo seja o de exaltar seu heroísmo e o de seu mítico líder, Zumbi (alguns grafam-no como Zamba), que resistiram de armas nas mãos mesmo contando com força desproporcional, muito inferior à dos atacantes.

Claro que minha apresentação é pífia e não expressa, nem de longe, a grandiosidade desse folguedo. Recomendo, porém, aos que se interessarem pelo assunto – e seria muito bom se todos os brasileiros se interessassem e não somente por essa manifestação, mas por todo nosso riquíssimo folclore – que busquem literatura específica a respeito, que há em profusão. Meu papel, no caso, é tão somente o de “provocador”.


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