Simulação da luta pela
liberdade
Pedro
J. Bondaczuk
O Brasil é, em vários
aspectos, país peculiar, sobretudo no que se refere ao seu maior patrimônio: o
humano. Ufanismos a parte – pois não estou raciocinando em termos de
superioridade ou inferioridade racial, porquanto esse conceito é vago e, a meu
ver, estúpido (ninguém é melhor do que ninguém, em sua essência, pois inexiste
parâmetro rigorosamente exato para fazer esse tipo de aferição que, ademais,
tenderia a ser estopim de preconceitos e discriminações) – está em andamento,
há já alguns séculos, um processo que tende a redundar num tipo étnico
característico e singular: o “brasileiro!. Este será, quando a miscigenação
estiver concluída, mistura homogênea de todos os tipos existentes na espécie
humana.
Somos um país
cosmopolita por excelência. Abrigamos pessoas de todas as etnias, credos,
culturas e tradições que não tardam a se aculturar e, em duas ou três gerações,
perder suas características étnicas originais. Vejam, por exemplo, o que
acontece especificamente na cidade de São Paulo, embora, claro, não apenas
nela. Se há um povo que não pode apregoar (felizmente) “pureza racial” este é o
nosso. E isso é ruim? Claro que não!!! É positivíssimo, a despeito do ranço de
preconceito que ainda cerca esse processo de miscigenação por parte de alguns.
Pobres deles, com suas visões tacanhas de mundo, da vida e do ser humano.
Nossa “matriz original”
não existe, pois não é única. Na verdade, é tripla: o branco europeu (no caso o
português, que também é fruto de miscigenação), o índio que habitava nosso
território quando este foi “descoberto” e o negro, trazido à força da África,
mas sem cujo braço seríamos ainda uma grande selva, inculta e atrasada. Cada
uma dessas etnias nos “emprestou” sua cultura, que acabou misturada, como os
genes das pessoas que a criaram, neste imenso e magnífico cadinho racial. À
medida que outros povos foram chegando e aqui se fixando incorporaram, aos
costumes e tradições já existentes (em que se misturavam influências européias,
indígenas e africanas), seus próprios, aumentando essa mistura. Daí termos um
dos folclores mais ricos e variados do Planeta, que não podemos deixar se
extinguir, seja lá por qual motivo for, pelo seu inestimável valor cultural.
Um dos folguedos
brasileiros mais expressivos entre os tantos existentes tem influências
marcantes da fusão de culturas de nossa “tripla matriz” genético-cultural, ou
seja, do branco, do índio e, no caso, sobretudo do negro. Refiro-me ao
“Quilombo”, popular, sobretudo, no Estado de Alagoas, mas não somente ali,
espalhando-se por todo o Nordeste e, em decorrência das contínuas e sucessivas
migrações, por todo o País. Essa manifestação folclórica consiste, basicamente,
na reunião de cinqüenta participantes, divididos em dois grupos: Pretos e
Caboclos (esse número varia, de acordo com a região). Os primeiros trajam
calças curtas azuis, porém mantêm-se nus da cintura para cima. Já os segundos,
vestem-se como índios, mas de tangas, com enfeites na cabeça e no corpo.
Cada um dos lados conta
com um rei e estes têm seus respectivos embaixadores. As vestimentas de todos
lembram muito as dos não menos tradicionais reisados, dos guerreiros etc. Há
outros personagens característicos, além dos citados. São os casos, por
exemplo, da rainha dos negros, da mamãe velha ou catirina, do papai velho, do
vigia dos negros, do espião dos caboclos e do vassalo dos índios, entre outros.
Todos estão armados com
espadas e terçados de madeira pintada para simular batalhas. Os dois grupos
lutam e, no final, os negros são vencidos. Há muita música, muita dança, muita
coreografia ao som do terno de zabumba que anima as evoluções. O chefe do
Quilombo é o Rei dos Caboclos. Seus trajes são mais suntuosos e sofisticados
que o dos demais participantes, mostrando, aos espectadores, que ele é o
personagem mais importante. Os componentes “idosos” dos respectivos grupos, são
caracterizados como tal. É o caso, por exemplo, do papai velho, que ostenta
cabeleira e barba brancas, e traz um cajado e uma foice nas mãos.
É interessante ressaltar
que o papel da catirina é representado por um homem vestido de mulher. Seus
trajes são uma saia e um casaco de florões e um pano colorido na cabeça. Além
disso, pinta-se com tiana de panela. Já a rainha dos caboclos é mulher mesmo.
Veste-se de branco, guarda peito de espelhos, capa amarela e diadema de papelão
pintado. Os trajes são característicos e bastante interessantes, assim como
tudo o mais que envolve esse tipo de folguedo.
O enredo é dividido em
duas partes. Na primeira, ocorre o resgate das coisas roubadas na véspera,
ocasião em que se simulam combates entre as duas facções. Na segunda fase,
acontece uma venda de escravos, com a participação do público presente, e todo
o dinheiro apurado é revertido no custeio do evento. O Quilombo é um dos raros
folguedos que não têm conotação religiosa e nem data específica para ser
apresentado. Tem algumas variantes que recebem nomes próprios de acordo com a
região em que ocorre. É o caso, por exemplo, do “Lambe-sujo” registrado no
Sergipe, cujas características são idênticas às do Quilombo tradicional. A
diferença é que os que representam a facção dos negros passam uma mistura de
carvão e óleo na pele. Daí sua designação. Ou seja, “Lambe-sujo”.
Outra variante
conhecida, posto que um tanto restrita, é a do “Nego fugido”. Ela é mantida
viva, há mais de um século, numa região específica do Recôncavo Baiano,
sobretudo em Acupe, distrito da cidade de Santo Amaro da Purificação. Neste
caso, a diferença não se restringe à caracterização de personagens, mas ao
próprio enredo do folguedo. Como o nome sugere, a encenação recria uma
tentativa de fuga de escravos, que são caçados, capturados e amarrados. Na
sequência, os cativos tentam comprar a alforria. Os participantes que
representam os negros quando não estão correndo para fugir dos perseguidores,
ou lutando, permanecem numa espécie de dança lenta, ao ritmo da música
característica que, conforme folcloristas que se empenham no estudo do
Quilombo, tem estreitas ligações com o candomblé. Há uma série de observações e
comentários suscitados por este folguedo.
Uma das coisas, por
exemplo, que causam maior estranheza, principalmente ao leigo, é o fato da
encenação consistir em luta entre negros e índios. Por que? Porque estas duas
etnias nunca tiveram, historicamente, rivalidades que chegassem a esse ponto.
Alguns escritores sugerem que isso provavelmente se deva ao fato de, na luta
para a destruição do mais famoso dos quilombos, o de Palmares, ter ocorrido a
participação de alguns indígenas. É possível, mas certeza, certeza mesmo,
ninguém tem. Quanto ao fato dos negros encenarem uma derrota, o provável é que
o objetivo seja o de exaltar seu heroísmo e o de seu mítico líder, Zumbi
(alguns grafam-no como Zamba), que resistiram de armas nas mãos mesmo contando
com força desproporcional, muito inferior à dos atacantes.
Claro que minha
apresentação é pífia e não expressa, nem de longe, a grandiosidade desse
folguedo. Recomendo, porém, aos que se interessarem pelo assunto – e seria
muito bom se todos os brasileiros se interessassem e não somente por essa
manifestação, mas por todo nosso riquíssimo folclore – que busquem literatura
específica a respeito, que há em profusão. Meu papel, no caso, é tão somente o
de “provocador”.
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